Uma saga televisiva de sucesso que triunfou no cinema
Foi em 1966 que Star Trek se estreou na televisão: meio século depois, a saga continua com um novo filme produzido por J.J. Abrams
Quando vemos algumas imagens da rodagem do novo Star Trek: Além do Universo (estreia-se hoje), não podemos deixar de pensar no modo como a saga criada por Gene Roddenberry (1921-1991) resistiu às mais dramáticas transformações da indústria cinematográfica. Assim, os atores movem-se num espaço verde, de estúdio, contracenando apenas com alguns escassos objetos da ação – tudo o resto irá ser “acrescentado” às imagens através das mais modernas técnicas de efeitos especiais...
Em boa verdade, no plano conceptual, tal ganho técnico pode também ser visto como uma perda de energia temática e simbólica: o novo filme corre mesmo o risco de desiludir os fãs mais militantes, sobretudo pelo modo como se afasta de um certo “artesanato” associado à mitologia da série, aproximando-se perigosamente de um fogo-de-artifício (visual e sonoro) que, para o melhor ou para o pior, tem sido mais típico de filmes com Batman, Superman e outros super-heróis.
Uma coisa é certa: meio século passado sobre o nascimento televisivo de Star Trek – o primeiro episódio da série original foi transmitido pela NBC, no dia 8 de setembro de 1966 –, as aventuras dos tripulantes da nave Enterprise continuam a ser uma das franchises de maior sucesso no universo global do audiovisual. No plano meramente financeiro, os números são eloquentes. É certo que Star Trek ocupa “apenas” o 24.º lugar no top das franchises mais rentáveis (comandado pelos filmes produzidos pela Marvel a partir dos seus heróis da banda desenhada); em qualquer caso, as receitas globais dos respetivos filmes aproximam-se dos 2,2 mil milhões de dólares (perto de dois mil milhões de euros).
Ao longo dos seus primeiros 13 anos, Star Trek existiu apenas como fenómeno televisivo: primeiro no seu formato original; depois, a partir de 1973, também como série de animação. Os intérpretes das personagens principais – nomeadamente William Shatner (capitão Kirk), Leonard Nimoy (Spock) e DeForest Kelley (Dr. McCoy) – emprestavam também as suas vozes às figuras dos desenhos animados. Na idade dos blockbusters A entrada de Star Trek no universo específico da produção cinematográfica deu-se em 1979, com o filme Star Trek: The Motion Picture, entre nós lançado como O Caminho das Estrelas. Havia nele a preocupação de preservar um clima “ingénuo” na caracterização de cenários mais ou menos surreais, ao mesmo tempo que se procurava valorizar tudo o que resultava da sofisticação técnica dos estúdios, normalmente ausente das rotinas de produção em televisão.
O carácter paradoxal desse primeiro Star Trek para cinema surgia, de algum modo, reforçado pela conjuntura industrial e comercial em que surgiu. Estava-se, de facto, no começo da idade dos blockbusters, sinalizada por dois títulos de conceção espetacular bem diversa: Tubarão (1975) e A Guerra das Estrelas (1977). E também, claro, pelos símbolos de uma nova geração que os assinavam: Steven Spielberg e George Lucas, respetivamente. Ora, a realização de Star Trek foi entregue a Robert Wise (1914-2005), veterano cujo maior sucesso era Música no Coração (1965), espetáculo familiar e musical bem distante de qualquer atribulação galáctica. Além do mais, o prestígio de Wise na idade de ouro de Hollywood estava ligado a títulos como Nobreza de Campeão (1949), sobre os bastidores do boxe, ou O Dia em que a Terra Parou (1951), clássico da ficção científica.
Que eram tempos bem diferentes, quer na dinâmica de Hollywood quer no imaginário cultural do público, prova-o a própria performance comercial das aventuras de Spock & Cª. Assim, na lista dos títulos mais rentáveis de 1979, Star
Trek surgia em quinto lugar, ligeiramente abaixo de Apocalypse
Now, de Francis Ford Coppola – o primeiro lugar pertencia ao melodrama familiar Kramer contra
Kramer, dirigido por Robert Benton, com o par Dustin Hoffman e Meryl Streep. Sistema de espetáculo Seja como for, os filmes continuaram a surgir com regularidade, por vezes com membros do elenco a assumir a realização: Star Trek III: A Aventura Continua (1984) e Star Trek IV: Regresso à Terra (1986) foram assinados por Leonard Nimoy, enquanto William Shatner dirigiu Star Trek V: A Última Fronteira (1989). A partir de Star Trek: Gerações (1994), de David Carson, apostou-se na integração de personagens lançadas por uma nova série televisiva (The Next Generation), com destaque para o capitão Picard, interpretado por Patrick Stewart.
Agora, Star Trek: Além do Universo corresponde a uma fase bem diferente, quanto mais não seja porque a sua personalidade-chave não será o realizador Justin Lin, mas sim o produtor J.J. Abrams, que já dirigira os dois títulos anteriores (Star Trek e Além da Escuridão: Star Trek, respetivamente de 2009 e 2013). Muito para lá de qualquer nostalgia clássica, assistimos à afirmação de um sistema de espetáculo e entertainment que não pode ser dissociado das novas tecnologias. Também para o melhor ou para o pior, uma parte do futuro de Hollywood joga-se nesta renovação.
O novo filme corre
mesmo o risco de desiludir os fãs
mais militantes