Diário de Notícias

Deputadas apresentad­as a João Torto

O Presidente Marcelo levou as representa­ntes do povo ao povo. Levou-as mais do que à Feira de São Mateus, levou-as ao alto da feira, para lhes apresentar o nosso primeiro piloto, se não em voo livre pelo menos em voo picado

- Por Ferreira Fernandes

OO Presidente Marcelo Rebelo de Sousa acabou as férias e deitou-se logo à estrada. Rumou para o centro do país, no que se julgou ser mais uma romagem de político ao rescaldo dos fogos. Mas os incêndios já tinham depenado os cimos das serras da Gralheira e de São Macário, andavam longe deViseu, o destino presidenci­al. Marcelo passou primeiro pela termas de São Pedro do Sul. Aí, encontrou-se com dirigentes partidário­s, o que aguçou o interesse dos jornalista­s. Esperavam mais uma jornada de afetos e saiu-lhes uma cimeira política. O cheiro das águas sulfurosas fez suspeitar de assunto grave. Chegaram Catarina Martins, do Bloco, Rita Rato, a deputada do PCP, a líder centrista, Assunção Cristas, e as dirigentes do PS e PSD, Ana Catarina Mendes e Maria Luís Albuquerqu­e... Marcelo tomava café na esplanada e olhava divertido para as velhas que saíam das termas envoltas em toalhas, com ar sofrido, como que envergonha­das pelo prazer que os jatos de água quente lhes trouxeram. Mal o viam, elas abriam um sorriso incrédulo e corriam a exigir um beijinho de que não se envergonha­vam. A coincidênc­ia de ser só feminina a representa­ção política pôs os jornalista­s a especular sobre o assunto que vinham tratar. Era sobre quotas... – já espalhavam alguns, sem se dar conta da misoginia da hipótese, como se isso fosse só assunto delas. Marcelo arrumou a questão dizendo que convidara os partidos para o acompanhar naquela jornada e eles mandaram quem bem entenderam. E, dizendo que estava encantado com a escolha, rodeou a explicação, que não deu, sobre o assunto do encontro. Entretanto, conheceram-se explicaçõe­s para algumas ausências. António Costa fora a Paris para uma cimeira dos socialista­s europeus. E, nos noticiário­s das 13h00, o próprio Passos Coelho, passeando frente à Igreja Matriz, em Ponta Delgada, disse que não pôde ir por “estar doente.” EmViseu, o grupo foi à inauguraçã­o duma estação de tratamento de águas, contornou algumas das rotundas de que a cidade se orgulhava e participou num jantar honrado pelo arroz de carqueja e as farinheira­s locais e um Dão do Paço de Santar. Embora agradável, a visita não impedia trocas de olhar, apesar das diferenças ideológica­s, entre as convidadas. “Que fazemos aqui?”, sugeriam os olhos da Ana Catarina a uma Assunção que respondia com igual interrogaç­ão entre as pestanas: “Que sei eu, minha querida?” Na sobremesa, quando se hesitava entre os pastéis de Vouzela e os caçoilinho­s do Vouga, o Presidente declarou: “Disto não havia na Nau Catrineta.” Nem toda a audiência deveria conhecer bem a história mas Marcelo, professor e cavalheiro, soube conduzir a explicação como se o conhecimen­to fosse comum. “Ao lado do meu gabinete, em Belém, como algumas de vocês já viram, há uma tapeçaria com o tríptico do Almada Negreiros sobre a Nau Catrineta, que todos conhecem.” A tapeçaria já foi aqui contada, no folhetim. O painel da nau perdida e sem nada que manjar, e a má-sorte do capitão que foi sorteado para ser morto pela tripulação... As senhoras suspendiam a dentada nos pastéis, apesar de Marcelo atirar-se a castanhas de ovos enquanto contava. No segundo painel, o gajeiro, mandado subir ao mastro à cata de salvação, viu três donzelas, em terras de Portugal. E no terceiro, o povo de Lisboa, varinas e burgueses, festejava o encontro do capitão com as suas filhas (as três donzelas). “Sabem o que o gajeiro quis por prémio?”, perguntou Marcelo, pousando a tigela vazia. Respondeu ele próprio: “A nau, para continuar a viajar...” Do jantar partiram para a Feira de São Mateus. A caminho, as trocas de olhares já sugeriam que as convidadas adivinhava­m que Marcelo lhes queria deixar uma mensagem, ou mais. Na feira, Marcelo levou-as logo para um grande balão e convidou-as a subir ao cesto. Elas hesitaram, mas o serem dirigentes políticas decidiu-as. O Presidente fez questão de pagar os 15 euros por cabeça – por um momento, Rita Rato ainda pensou se o partido acharia bem aquela espécie de oferta da Galp e Maria da Luz suspeitou de armadilha, mas foi só um momento. O balão de ar quente subiu, era de voo cativo, agarrado por fortes amarras. OlharamVis­eu. Lá do cimo, Marcelo falou-lhes de João Torto. Barbeiro, sangrador e mestre de primeiras letras, João de Almeida Torto fez asas de pano farto, asas de feitiço, e atirou-se do alto da torre da Sé de Viseu, “aquela, ali”, Marcelo apontou para a colina iluminada, com o fito de chegar ao Campo de São Mateus, “aqui”, apontou para baixo. Mas ele caiu sobre o telhado duma capela e, dali, no lajedo. Morreu. Eram cinco da tarde de 20 de junho de 1540, o nosso primeiro voo livre. “Foi e não foi, fez e não fez, próprio de quem tenta”, disse Marcelo às políticas. E pousaram.

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Do balão, Marcelo falou-lhes de João Torto, barbeiro e sangrador, que fez asas de pano farto, asas de feitiço, e atirou-se do alto da torre da Sé de Viseu, “aquela, ali”

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