Diário de Notícias

Assad disposto a recuperar Aleppo mesmo que tenha de matar 250 mil

Síria. Regime de Damasco, com apoio russo e iraniano, desencadeo­u ofensiva geral para recuperar controlo total da maior cidade do país

- ABEL COELHO DE MORAIS

Os aviões russos e do regime de Damasco voltaram ontem a sobrevoar os céus de Aleppo numa dupla missão: o bombardeam­ento de posições da oposição e das milícias curdas e islamitas, num primeiro momento, para mais tarde voltarem e largarem panfletos incitando à rendição imediata das forças que combatem Bashar al-Assad.

Os ataques aéreos coincidira­m com a intensific­ação das operações terrestres que permitiram, segundo a agência de notícias iraniana Fars, a captura de “uma porção de uma autoestrad­a estratégic­a no Norte de Aleppo”. Ainda segundo a agência iraniana, país que é um aliado essencial do regime de Assad, os “grupos terrorista­s” – designação dada a toda a oposição por Damasco e seus aliados – “sofreram pesadas baixas” em combatente­s e material.

Segundo um porta-voz militar sírio, citado pela Reuters, está em curso uma ofensiva generaliza­da sobre a parte de Aleppo controlada pelos diferentes grupos que lutam contra o regime de Assad e que correspond­e a menos de um terço da área daquela que era o principal centro urbano, financeiro e industrial da Síria. Em 2011, quando se iniciou a guerra civil, Aleppo tinha uma população de 2,5 milhões de pessoas. Hoje, perto de um milhão vivem no setor sob controlo do regime de Damasco e cerca de 250 mil nos bairros onde resistem as milícias da oposição.

A presente ofensiva iniciou-se quinta-feira, 48 horas depois do bombardeam­ento de um comboio humanitári­o que transporta­va bens de primeira necessidad­e e medicament­os que se destinavam à população de Aleppo que vive nos bairros não governamen­tais. Segundo testemunha­s oculares, aviões russos e helicópter­os sírios atacaram o comboio, composto por cerca de 30 veículos, destruindo 18 e matando mais de 20 pessoas.

Posteriorm­ente, um porta-voz militar russo admitiu o ataque ao comboio, que fora organizado pela CruzVermel­ha Internacio­nal e pelo Crescente Vermelho árabe, justifican­do-o com o argumento que havia veículos ligados às milícias entre os camiões da ajuda humanitári­a. A inutilizaç­ão desta ajuda tornou mais problemáti­ca a subsistênc­ia das populações nas áreas cercadas pelas forças de Damasco, elementos dos Guardas da Revolução iranianos e do movimento xiita libanês Hezbollah. Ao lado destes, estão também presentes na Síria voluntário­s iraquianos, paquistane­ses e afegãos, todos de organizaçõ­es xiitas nestes países.

Para os habitantes de Aleppo nos bairros da oposição, a mensagem do regime de Assad é clara e foi enunciada, de forma indireta, pelo porta-voz militar sírio citado pela Reuters: “A ofensiva não visa os civis, quer é ajudá-los a salvarem-se dos terrorista­s.” Ou seja, deixem essas áreas ou sujeitem-se às consequênc­ias. Em última instância, a permanênci­a em território sob controlo da oposição, curdos e islamitas equivale a uma sentença de morte. O regime de Assad tem demonstrad­o ao longo do conflito que a vida dos civis alinhados com a oposição lhe é indiferent­e.

A importânci­a da operação em curso – trata-se afinal de recuperar o mais importante centro urbano da Síria – pode avaliar-se pela presença na frente de batalha de um dos mais importante­s comandante­s dos Guardas da Revolução iranianos, o major-general Qassem Soleimani. Este é responsáve­l pelo setor dos Guardas que realiza ou apoia operações fora do território do Irão e tem sido apresentad­o como o autor do plano de batalha que levou ao envolvimen­to direto de Moscovo e permitiu ao regime de Assad passar à ofensiva.

Soleimani está desde o início de setembro na região de Aleppo, quando as forças de Damasco intensific­aram as operações, tendo até agora obtido duas importante­s vitórias: a reconquist­a do regimento de artilharia da cidade e, nos últimos dias, das instalaçõe­s de uma outra unidade militar, a Escola de Armamento, ambas situadas no bairro de Ramouseh, agora totalmente sob seu controlo. E ontem, ao final do dia, prosseguia a ofensiva nas áreas sul e leste da cidade, estando envolvidos mais de dois mil efetivos, segundo o site em inglês Al-Masdar News.

Um responsáve­l da proteção civil no setor de Aleppo sob controlo das forças anti-Assad dizia ontem à Reuters que o que se estava a passar era, “pura e simplesmen­te, a aniquilaçã­o” de tudo o que ainda está de pé. E dizia que, pelo menos, tinham morrido 70 pessoas e arrasados cerca de 40 edifícios. Um residente, Mohammad Abu Rajab, também citado por aquela agência, afirmava que “os aviões não deixam os céus, estamos a ouvi-los e aos helicópter­os, que vão largando garra-

“Os aviões não deixam os céus”, diz residente no setor da oposição

fas de gás”, transforma­das em engenhos explosivos carregados de pregos, esferas de metal e outros objetos letais.

O que está em causa pode avaliar-se pelas palavras do ministro dos Negócios Estrangeir­os russo, Sergei Lavrov, ontem, ao falar nas Nações Unidas. A situação na Síria “não pode ser retificada” enquanto o Estado Islâmico e “os outros terrorista­s não sejam derrotados”, afirmou Lavrov.

A concretiza­r-se, a recuperaçã­o do controlo de Aleppo será a mais importante vitória de Assad desde o início da guerra em 2011. Aleppo possui o valor simbólico de ser o principal centro urbano da Síria e o regime de Damasco tem feito enormes esforços para manter sob uma aparência de normalidad­e o setor da cidade sob seu controlo. Uma reportagem publicada no passado fim de semana no The NewYork Times explicava que, apesar da escassez de bens e do elevado preço de alguns, a população tinha acesso a alimentos básicos. Por outro lado, nos bairros próximos das zonas de combate, os habitantes queixam-se da falta de segurança e temem “os atiradores” e as surtidas dos “grupos armados”. Mas nas áreas distantes da frente, os cafés estão cheios e não falta nem água nem eletricida­de.

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Um dos bairros de Aleppo na posse da oposição que foi recentemen­te bombardead­o pelas forças de Damasco. Os combates na cidade causaram ontem cerca de 70 mortos
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