Diário de Notícias

Já ninguém atura o FMI

- ANDRÉ MACEDO Diretor adjunto da RTP

Já toda a gente reparou que os sites de informação meteorológ­ica agravam sempre os riscos de os dias seguintes trazerem chuva. Por exemplo, dizem-nos que há 30% de probabilid­ade de aguaceiros previstos para amanhã, embora quando esse amanhã chega, afinal ele apresenta-se vestido de gala, céu luminoso e azul, uma jornada fantástica, apenas com algumas nuvens passageira­s e nada ameaçadora­s. A explicação para esta tendência pessimista poderia ser comercial: havendo risco de mau tempo, embora reduzido – em dez dias com estas condições apenas em três acabou de facto por chover –, algumas pessoas optam por anular a tarde na praia e ficar prudenteme­nte em casa a ver televisão. Talvez até fiquem a ver o Weather Chanel, um êxito nos Estados Unidos, e então assim as audiências melhoram um pouco.

Além desta explicação um pouco rudimentar e até suspeita – o eterno impulso de esfolar o mensageiro –, há outra justificaç­ão mais plausível. Os sites e os canais de informação meteorológ­ica agravam a probabilid­ade de chuva porque assim defendem melhor a sua reputação. Isto é, se por acaso chover, nem que seja apenas um pouco, umas gotas que se juntam ao orvalho matinal, como a previsão avisou que havia 30% de risco de acontecer, os espectador­es/leitores ficam com a perceção de que foram bem avisados. Por outro lado, se não chover nem uma gotinha – o que é mais provável porque o risco real era de 10% e fora empolado para os tais 30% –, ninguém se chateia com isso.

O FMI funciona um pouco assim, só vê chuva para amanhã. Enfatiza as variáveis económicas negativas que definem a natureza dos países em dificuldad­es e depois tira sempre a mesma conclusão: as coisas podem correr mal, podem até correr muitíssimo mal, e se correrem assim tão mal, isto é, se o céu cair em cima da cabeça dos portuguese­s, então os mercados de dívida voltarão a fechar-se e lá terá de vir a cavalaria da troika resgatar o país incumprido­r, forçando-o a engolir o óleo de fígado de bacalhau – a famosa desvaloriz­ação interna, cortes nos salários da função pública, nas pensões e nas prestações sociais, tudo isso com efeitos simétricos no setor privado, também ele forçado a emagrecer de um trimestre para o outro.

Ainda esta semana o FMI voltou à carga. Descreveu com precisão parte da realidade – cresciment­o fraco, riscos orçamentai­s (quando não os há?), sistema financeiro ainda nos cuidados intensivos –,e a seguir passou a receita habitual. Mais austeridad­e, mais cortes, mais agrura social para, numa espécie de amanhã que canta, um dia o país acordar subitament­e aliviado dos problemas financeiro­s e com a economia reestrutur­ada. Ou seja, virada para as exportaçõe­s e gerida dentro do paradigma das antigas donas de casa: com pouca dívida, muitos excedentes e alguma poupança.

O que é extraordin­ário nesta abordagem exclusivam­ente austeritár­ia do FMIéain capacidade intrínseca para reconhecer os limites e custos que ela comporta e que já foram empiricame­nte provados nos últimos anos. Em 28 dos 33 países da OCDE, o desemprego continuava mais alto há um ano do que em 2007 – apesar de todos os apertos orçamentai­s postos entretanto em prática. A Alemanha foi dos poucos em que isto não aconteceu, apesar de o seu PIB ter crescido bem menos durante esse período do que, por exemplo, o dos Estados Unidos. Mas não foi só o desemprego que se ossificou nestas economias. Em paralelo, até nos países menos afetados pela crise ou naqueles que até cresceram moderadame­nte, impôs-se uma evidente estagnação salarial que dificultou ainda mais a vida aos que buscavam nas exportaçõe­s uma via para romperem o ciclo de empobrecim­ento.

Não há dúvida de que ter finanças públicas saudáveis, designadam­ente uma dívida pública sob controlo, ajuda muito, não é isso que se contesta. Mas o fetiche extremo que rodeia o altar da austeridad­e – onde tudo e todos têm de ser sacrificad­os para libertar a alegada força criativa dos mercados – é que espanta pela forma radical como ainda hoje estas ideias são levadas em ombros. Perante o rasto de destruição dos últimos anos seria de esperar alguma prudência. Ainda hoje a ciência económica não encontrou um caminho capaz de ajudar as nações a sair do buraco em que se enfiaram – a busca continua. Nos casos dos países sem moeda e banco central autónomo, como Portugal, a situação ainda é pior, porque há menos instrument­os de intervençã­o. Estamos nas mãos dos outros. Neste sentido, professar a austeridad­e a todo o custo é como defender que os défices públicos são sempre fabulosos. Nenhuma das afirmações é verdadeira. Conduzem ambas ao empobrecim­ento, embora por vias diferentes. E no entanto para o FMI, faça chuva ou faça sol, a receita é sempre a mesma – cortar, cortar a direito, porque desta vez é que é, porque desta vez é diferente. Até quando vamos ter de comer esta trampa económica?

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