Já ninguém atura o FMI
Já toda a gente reparou que os sites de informação meteorológica agravam sempre os riscos de os dias seguintes trazerem chuva. Por exemplo, dizem-nos que há 30% de probabilidade de aguaceiros previstos para amanhã, embora quando esse amanhã chega, afinal ele apresenta-se vestido de gala, céu luminoso e azul, uma jornada fantástica, apenas com algumas nuvens passageiras e nada ameaçadoras. A explicação para esta tendência pessimista poderia ser comercial: havendo risco de mau tempo, embora reduzido – em dez dias com estas condições apenas em três acabou de facto por chover –, algumas pessoas optam por anular a tarde na praia e ficar prudentemente em casa a ver televisão. Talvez até fiquem a ver o Weather Chanel, um êxito nos Estados Unidos, e então assim as audiências melhoram um pouco.
Além desta explicação um pouco rudimentar e até suspeita – o eterno impulso de esfolar o mensageiro –, há outra justificação mais plausível. Os sites e os canais de informação meteorológica agravam a probabilidade de chuva porque assim defendem melhor a sua reputação. Isto é, se por acaso chover, nem que seja apenas um pouco, umas gotas que se juntam ao orvalho matinal, como a previsão avisou que havia 30% de risco de acontecer, os espectadores/leitores ficam com a perceção de que foram bem avisados. Por outro lado, se não chover nem uma gotinha – o que é mais provável porque o risco real era de 10% e fora empolado para os tais 30% –, ninguém se chateia com isso.
O FMI funciona um pouco assim, só vê chuva para amanhã. Enfatiza as variáveis económicas negativas que definem a natureza dos países em dificuldades e depois tira sempre a mesma conclusão: as coisas podem correr mal, podem até correr muitíssimo mal, e se correrem assim tão mal, isto é, se o céu cair em cima da cabeça dos portugueses, então os mercados de dívida voltarão a fechar-se e lá terá de vir a cavalaria da troika resgatar o país incumpridor, forçando-o a engolir o óleo de fígado de bacalhau – a famosa desvalorização interna, cortes nos salários da função pública, nas pensões e nas prestações sociais, tudo isso com efeitos simétricos no setor privado, também ele forçado a emagrecer de um trimestre para o outro.
Ainda esta semana o FMI voltou à carga. Descreveu com precisão parte da realidade – crescimento fraco, riscos orçamentais (quando não os há?), sistema financeiro ainda nos cuidados intensivos –,e a seguir passou a receita habitual. Mais austeridade, mais cortes, mais agrura social para, numa espécie de amanhã que canta, um dia o país acordar subitamente aliviado dos problemas financeiros e com a economia reestruturada. Ou seja, virada para as exportações e gerida dentro do paradigma das antigas donas de casa: com pouca dívida, muitos excedentes e alguma poupança.
O que é extraordinário nesta abordagem exclusivamente austeritária do FMIéain capacidade intrínseca para reconhecer os limites e custos que ela comporta e que já foram empiricamente provados nos últimos anos. Em 28 dos 33 países da OCDE, o desemprego continuava mais alto há um ano do que em 2007 – apesar de todos os apertos orçamentais postos entretanto em prática. A Alemanha foi dos poucos em que isto não aconteceu, apesar de o seu PIB ter crescido bem menos durante esse período do que, por exemplo, o dos Estados Unidos. Mas não foi só o desemprego que se ossificou nestas economias. Em paralelo, até nos países menos afetados pela crise ou naqueles que até cresceram moderadamente, impôs-se uma evidente estagnação salarial que dificultou ainda mais a vida aos que buscavam nas exportações uma via para romperem o ciclo de empobrecimento.
Não há dúvida de que ter finanças públicas saudáveis, designadamente uma dívida pública sob controlo, ajuda muito, não é isso que se contesta. Mas o fetiche extremo que rodeia o altar da austeridade – onde tudo e todos têm de ser sacrificados para libertar a alegada força criativa dos mercados – é que espanta pela forma radical como ainda hoje estas ideias são levadas em ombros. Perante o rasto de destruição dos últimos anos seria de esperar alguma prudência. Ainda hoje a ciência económica não encontrou um caminho capaz de ajudar as nações a sair do buraco em que se enfiaram – a busca continua. Nos casos dos países sem moeda e banco central autónomo, como Portugal, a situação ainda é pior, porque há menos instrumentos de intervenção. Estamos nas mãos dos outros. Neste sentido, professar a austeridade a todo o custo é como defender que os défices públicos são sempre fabulosos. Nenhuma das afirmações é verdadeira. Conduzem ambas ao empobrecimento, embora por vias diferentes. E no entanto para o FMI, faça chuva ou faça sol, a receita é sempre a mesma – cortar, cortar a direito, porque desta vez é que é, porque desta vez é diferente. Até quando vamos ter de comer esta trampa económica?