Folio, um festival literário com cheiro a mato e muitos nervos
Entre nomes mais e menos consagrados da literatura, em Óbidos há também lugar para protagonistas de outras áreas artísticas.
No Folio, o Nobel britânico Naipaul revelou não estar a escrever nenhum livro e não gostar de reescrever os seus romances
Ocheiro a mato dentro do Óbidos Lounge cai bem com a projeção do filme Cartas de Guerra, de Ivo Ferreira, adaptado dos aerogramas que o escritor António Lobo Antunes enviava à mulher durante o tempo em que esteve na Guerra Colonial. Esse aroma resulta da relva que cobre o chão onde foi montada a tenda para alguns dos eventos da segunda edição do Festival Literário Internacional de Óbidos, o Folio, que se vai entranhando nos espectadores a cada fotograma que passa na tela, mas logo desaparecerá mal a matiné cinematográfica acabe e se entre nos outros espaços onde decorrem mais de 250 iniciativas até dia 2 de outubro.
Na tenda dos autores, no primeiro dia do Folio não era o cheiro a mato que preponderava, mas a sensação de nervos em que o Nobel V.S. Naipaul deixou a sala cheia de espectadores, pois, devido à sua degradação física, arrepiava a cada resposta que lhe era arrancada. Mas não foi assim tão penoso, pelo contrário, os presentes sentiram-se desafiados pelo diálogo diminuto e ficaram a saber que Naipaul não está a escrever nada e não gostava de reescrever os seus romances: “Não escrevo como os outros fazem.” Ainda foi capaz de fazer uma piada sobre a língua portuguesa, o “S” de Camões, letra que tanta dificuldade cria aos estrangeiros segundo disse, arrancando muitas palmas à audiência.
À entrada deste espaço está uma exposição do fotógrafo francês Carlos Freire com retratos de vários autores – Graham Greene, Marguerite Duras ou Lawrence Durrell: “Não é jornalismo, foram momentos de intimidade e amizade com esses escritores que possibilitaram estas imagens.” Freire, que nasceu no Brasil, desistiu do retrato nos últimos tempos, mas ainda fotografou Saramago e Carlos Paredes, e prefere as viagens: “Publiquei um livro com o poeta sírio Adonis sobre Aleppo. O resultado foi fascinante pois ele escreveu o que eu não consegui captar e eu fotografei o que não estava na sua escrita.”
O Brasil está muito presente neste Folio. Seja com o trio Só Lapada, que tocou temas nordestinos durante abertura da exposição sobre o conto de Saramago, O Lagarto, que foi ilustrado por J. Borges, autor de xilogravuras típicas da literatura de cordel; seja nas sessões com o poeta Eucanaã Ferraz, nas canções de Edu Lobo interpretadas ao fim da noite pelo filho, Bena, e Marta Hugon – que, felizmente, nunca abrasileirou a sua voz; ou no debate em que participou o cronista Antonio Prata, recém-editado em Portugal pela primeira vez e que revelou ao DN duas coisas: que andou a passear por Lisboa para recordar a cidade do tempo em que lá viveu (aos 13 anos) e que, no tom humorístico dos seus textos, gostaria que o livro vendesse cem mil exemplares. E fez uma terceira revelação: “Óbidos é muito mais imponente do que Paraty [onde há a FLIP] com a sua muralha, basta ter noção de história.” Quanto à dificuldade de se entender o brasilês do seu livro, Prata responde “que as duas pessoas que conheço que já leram o livro perceberam tudo, mas malentendidos há até no meu país. A ironia e o humor são muitas vezes levadas demasiado a sério.” Remata: “Eu li as crónicas do Ricardo Araújo Pereira, que são muito boas. Se os portugueses o compreendem, também acontecerá o mesmo comigo.”
O curador da parte da literatura, José Eduardo Agualusa, explicou que esta presença maciça de autores brasileiros, como Bernardo Carvalho e Andrea del Fuego ontem, entre muitos outros, se deve ao apoio das entidades da cultura do seu país. Quando questionado sobre as diferenças entre as duas edições do Folio, acha que esta ainda está melhor. Só lamenta que os editores portugueses não estejam atentos ao Folio: “Esteve cá o poeta sul-africano Breyten Breytenbach, talvez uma das maiores vítimas do desconhecimento cultural do país, visto nem ter a obra editada por cá há mais de 20 anos. Isto é ignorância.” O mesmo se passa com o público, pois a presença nem sempre corresponde às expectativas da organização.
Ontem, estiveram no Folio vozes mais clássicas, como a de Helder Macedo numa aula sobre Camões, mais jovens como a da escritora Djamilia Pereira. Hoje e amanhã, a programação será exaustiva na Casa dos Poetas, para onde Raquel Guerra e Valério Romão convidaram uma dúzia de poetas portugueses da nova geração; Mário Zambujal também convida João Paulo Guerra e Alice Vieira para serem contadores de histórias; realiza-se a II Mostra de Ilustração com a presença especial da ilustradora Jutta Bauer e de duas dezenas de portugueses; além de muitos debates com Richard Zimler, o nórdico Jón Kalman Stefánsson, Juan Villalobos, Luiz Ruffato, entre dezenas de autores, músicos e artistas plásticos nacionais e estrangeiros. Sérgio Godinho fechará as duas noites, hoje com Filipe Cardoso e Rui Horta, amanhã com Aline Frazão e Pierre Aderne.