Diário de Notícias

Entre os arredores de Tóquio e o deserto do Novo México, com um toque de fado

Vê-se como um artista cota, valoriza a liberdade e vive para além da internet. Devendra Banhart regressa com novo trabalho.

- POR Miguel Judas

Três anos depois, Devendra Banhart está de volta aos discos com Ape in Pink Marble, ontem editado. Antes passou por Portugal, para falar sobre a vida e a sociedade atual, dois temas centrais neste novo trabalho. Devendra Banhart nasceu no Texas há 35 anos, mas ainda criança mudou-se para a Venezuela, o país natal da mãe, depois de os pais se separarem. Regressou aos Estados Unidos na adolescênc­ia, altura em que começou a fazer música. Deu-se a conhecer em 2002, com um álbum que compilava alguns temas feitos nos anos anteriores.Desde então, editou mais sete discos, mas foi comWhatWil­lWeBe (2009) e especialme­nte com Mala (2013) que se afirmou como um dos mais talentosos escritores de canções deste início de século, muito à custa da mistura de folk e psicadelis­mo do seu hipnótico rendilhado de guitarra e voz. Pelo meio, colaborou com nomes como Antony and the Johnsons, Beck,Vashti Bunyan, Os Mutantes, Gilberto Gil ou Caetano Veloso. Em paralelo, dedica-seà arte e muitos dos seus desenhos e pinturas já estiveram expostos em locais como o San Francisco Museum of Modern Art ou o Los Angeles Museu mof Contem por aryArt,e foram no ano passado reunidos no livroILeft­My Noodle on Ramen Street. Avisaram-me à entrada de que está um pouco cansado, devido à sucessão de viagens para promoção do disco. Esta é a pior parte do trabalho de um músico? Muito pelo contrário, é antes uma oportunida­de para praticar a gratidão e para me lembrar o quão afortunado sou. E também uma oportunida­de para esclarecer algumas questões, porque muitas vezes o que se escreve não correspond­e totalmente à realidade. Fica desapontad­o por isso? A maior parte das vezes fico é desapontad­o comigo, porque as melhores respostas só vão surgir depois, quando a entrevista acabar e eu estivar a pensar nas perguntas que me fizeram. De certa forma posso descrever toda a minha vida assim, como um grande exercício de arrependim­entos, embaraços e erros, quase como se fosse um mau dançarino que está continuame­nte a envergonha­r-se a si próprio, com os seus movimentos. Metaforica­mente, sinto-me sempre num palco barrado de manteiga. Mas a vida é feita de tentativas e erros, até que um dia finalmente acertamos nalguma coisa. É aquele cliché do work in progress, que nos dá uma grande sensação de alívio ao acordar, por nos tirar o peso de estarmos sempre a tentar ser perfeitos em tudo. E isso também se aplica à música e à arte, no geral? A arte não é tão desafiador­a a esse nível, porque é mais subjetiva. Aquilo que eu acho sublime pode ser considerad­o horrível por outra pessoa. A questão da perfeição tem muito mais que ver com a vida, com o dinheiro, com os nossos corpos, com as relações pessoais e todas essas coisas que a sociedade nos impõe que sejam perfeitas. O tema Linda, que encerra o álbum, fala sobre isso, certo? Sim, é uma reflexão sobre o modo como a sociedade estabelece os nossos valores, que hoje são muito mais baseados na presença online, se somos ou não googláveis. E se não o somos, então não temos valor. É claro que isso não é verdade, mas continua a ser uma pressão cada vez mais presente nas nossas vidas. É uma canção que, a determinad­os momentos, me faz lembrar um pouco um fado… Uau, muito obrigado, gosto muito de fado [responde em português]. É, acima de tudo, uma canção iluminada, porque nos apresenta uma pessoa livre, na sua subjetivid­ade. Trata-se de uma personagem com consciênci­a do mundo mas que prefere viver assim, só, sem qualquer tipo de culpa em relação a essa imposição da sociedade, de julgar o ser humano com base em algo totalmente insano, como o número de likes na porra do Facebook. Tem que ver com os nossos próprios princípios de felicidade. Todos nós somos únicos e especiais e isso não se pode avaliar através daquilo que transmitim­os online, mas sim do que nos sai do coração. Linda tem consciênci­a disto tudo, mas como optou por ser anónima, tem a possibilid­ade de ser livre para viver a vida como bem entende. A sua felicidade não depende da aprovação dos outros. É como se tivesse desistido de tudo e, ao fazê-lo, encontrou-se finalmente a ela própria. É isso que tenta fazer com a sua música e a sua arte? Não sei, mas sei que me identifico com isso e vivo dessa forma. Todos os meus amigos têm filhos e família e eu continuo a viver sozinho, tal como a Linda. Gosto muito de estar com eles e brincar com as crianças, mas depois vou para casa e posso dar-me ao luxo de desaparece­r. E foi isso que aconteceu quando escrevi esta música. Estava a conduzir através do deserto do Novo México e não havia ninguém a quem tivesse de ligar. Senti-me realmente livre e nem importava se sou ou não googlável, porque o teleone não existia, naquele local [risos]. No momento em que o liguei, essa sensação de liberdade desaparece­u. Faço-o muitas vezes, mas devia fazêlo mais. É um aparelho fascinante, pela forma como nos conecta e permite criar comunidade­s a milhares de quilómetro­s de distância, e isso é um verdadeiro milagre. Mas, por outro lado, é uma máquina consumista e egocêntric­a. Este é um álbum bastante imagético, que quase nos permite visualizar toda a ação. Soa também muito melancólic­o e meditativo, com uma certa dose de ironia. Concorda? Sim, absolutame­nte. E não estou só a ser preguiçoso nas respostas ao concordar. Mas sim, sim e sim… Tentámos colocar este disco num lugar imaginário específico, que é um hotel decadente nos arredores de Tóquio, totalmente o oposto deste [a entrevista decorreu no Pestana Palace, em Lisboa]. O disco funciona um pouco como a banda sonora que se ouve no lobby e, ao mesmo tempo, vai retratando todos os dramas e pequenas histórias que por lá acontecem. Antes de começarmos o disco fizemos uma banda sonora para o filme Joshy. Como era a minha estreia no cinema, o realizador Jeff Baena aconselhou-me a não revelar muito da ação através da música. Foi uma maneira nova de encarar a composição que me permitiu voltar a trabalhar de um modo mais básico, como fazia no início de carreira. E quando começámos este disco quisemos voltar a fazê-lo, de modo a poder contar as histórias de uma forma simples e direta, como num filme. Como é que se descreveri­a? Um músico que também pinta e desenha ou como um artista visual que às vezes faz uns discos? Vejo-me como um artista… Qual é aquela palavra africana que vocês usam, aqui em Portugal, para definir um homem velho, em calão? Cota? Sim, isso mesmo. É assim que me vejo, como um artista cota…

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Em Ape in Pink Marble, ontem lançado, Devendra Banhart conta as histórias de uma forma simples e direta, como num filme

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