Entre os arredores de Tóquio e o deserto do Novo México, com um toque de fado
Vê-se como um artista cota, valoriza a liberdade e vive para além da internet. Devendra Banhart regressa com novo trabalho.
Três anos depois, Devendra Banhart está de volta aos discos com Ape in Pink Marble, ontem editado. Antes passou por Portugal, para falar sobre a vida e a sociedade atual, dois temas centrais neste novo trabalho. Devendra Banhart nasceu no Texas há 35 anos, mas ainda criança mudou-se para a Venezuela, o país natal da mãe, depois de os pais se separarem. Regressou aos Estados Unidos na adolescência, altura em que começou a fazer música. Deu-se a conhecer em 2002, com um álbum que compilava alguns temas feitos nos anos anteriores.Desde então, editou mais sete discos, mas foi comWhatWillWeBe (2009) e especialmente com Mala (2013) que se afirmou como um dos mais talentosos escritores de canções deste início de século, muito à custa da mistura de folk e psicadelismo do seu hipnótico rendilhado de guitarra e voz. Pelo meio, colaborou com nomes como Antony and the Johnsons, Beck,Vashti Bunyan, Os Mutantes, Gilberto Gil ou Caetano Veloso. Em paralelo, dedica-seà arte e muitos dos seus desenhos e pinturas já estiveram expostos em locais como o San Francisco Museum of Modern Art ou o Los Angeles Museu mof Contem por aryArt,e foram no ano passado reunidos no livroILeftMy Noodle on Ramen Street. Avisaram-me à entrada de que está um pouco cansado, devido à sucessão de viagens para promoção do disco. Esta é a pior parte do trabalho de um músico? Muito pelo contrário, é antes uma oportunidade para praticar a gratidão e para me lembrar o quão afortunado sou. E também uma oportunidade para esclarecer algumas questões, porque muitas vezes o que se escreve não corresponde totalmente à realidade. Fica desapontado por isso? A maior parte das vezes fico é desapontado comigo, porque as melhores respostas só vão surgir depois, quando a entrevista acabar e eu estivar a pensar nas perguntas que me fizeram. De certa forma posso descrever toda a minha vida assim, como um grande exercício de arrependimentos, embaraços e erros, quase como se fosse um mau dançarino que está continuamente a envergonhar-se a si próprio, com os seus movimentos. Metaforicamente, sinto-me sempre num palco barrado de manteiga. Mas a vida é feita de tentativas e erros, até que um dia finalmente acertamos nalguma coisa. É aquele cliché do work in progress, que nos dá uma grande sensação de alívio ao acordar, por nos tirar o peso de estarmos sempre a tentar ser perfeitos em tudo. E isso também se aplica à música e à arte, no geral? A arte não é tão desafiadora a esse nível, porque é mais subjetiva. Aquilo que eu acho sublime pode ser considerado horrível por outra pessoa. A questão da perfeição tem muito mais que ver com a vida, com o dinheiro, com os nossos corpos, com as relações pessoais e todas essas coisas que a sociedade nos impõe que sejam perfeitas. O tema Linda, que encerra o álbum, fala sobre isso, certo? Sim, é uma reflexão sobre o modo como a sociedade estabelece os nossos valores, que hoje são muito mais baseados na presença online, se somos ou não googláveis. E se não o somos, então não temos valor. É claro que isso não é verdade, mas continua a ser uma pressão cada vez mais presente nas nossas vidas. É uma canção que, a determinados momentos, me faz lembrar um pouco um fado… Uau, muito obrigado, gosto muito de fado [responde em português]. É, acima de tudo, uma canção iluminada, porque nos apresenta uma pessoa livre, na sua subjetividade. Trata-se de uma personagem com consciência do mundo mas que prefere viver assim, só, sem qualquer tipo de culpa em relação a essa imposição da sociedade, de julgar o ser humano com base em algo totalmente insano, como o número de likes na porra do Facebook. Tem que ver com os nossos próprios princípios de felicidade. Todos nós somos únicos e especiais e isso não se pode avaliar através daquilo que transmitimos online, mas sim do que nos sai do coração. Linda tem consciência disto tudo, mas como optou por ser anónima, tem a possibilidade de ser livre para viver a vida como bem entende. A sua felicidade não depende da aprovação dos outros. É como se tivesse desistido de tudo e, ao fazê-lo, encontrou-se finalmente a ela própria. É isso que tenta fazer com a sua música e a sua arte? Não sei, mas sei que me identifico com isso e vivo dessa forma. Todos os meus amigos têm filhos e família e eu continuo a viver sozinho, tal como a Linda. Gosto muito de estar com eles e brincar com as crianças, mas depois vou para casa e posso dar-me ao luxo de desaparecer. E foi isso que aconteceu quando escrevi esta música. Estava a conduzir através do deserto do Novo México e não havia ninguém a quem tivesse de ligar. Senti-me realmente livre e nem importava se sou ou não googlável, porque o teleone não existia, naquele local [risos]. No momento em que o liguei, essa sensação de liberdade desapareceu. Faço-o muitas vezes, mas devia fazêlo mais. É um aparelho fascinante, pela forma como nos conecta e permite criar comunidades a milhares de quilómetros de distância, e isso é um verdadeiro milagre. Mas, por outro lado, é uma máquina consumista e egocêntrica. Este é um álbum bastante imagético, que quase nos permite visualizar toda a ação. Soa também muito melancólico e meditativo, com uma certa dose de ironia. Concorda? Sim, absolutamente. E não estou só a ser preguiçoso nas respostas ao concordar. Mas sim, sim e sim… Tentámos colocar este disco num lugar imaginário específico, que é um hotel decadente nos arredores de Tóquio, totalmente o oposto deste [a entrevista decorreu no Pestana Palace, em Lisboa]. O disco funciona um pouco como a banda sonora que se ouve no lobby e, ao mesmo tempo, vai retratando todos os dramas e pequenas histórias que por lá acontecem. Antes de começarmos o disco fizemos uma banda sonora para o filme Joshy. Como era a minha estreia no cinema, o realizador Jeff Baena aconselhou-me a não revelar muito da ação através da música. Foi uma maneira nova de encarar a composição que me permitiu voltar a trabalhar de um modo mais básico, como fazia no início de carreira. E quando começámos este disco quisemos voltar a fazê-lo, de modo a poder contar as histórias de uma forma simples e direta, como num filme. Como é que se descreveria? Um músico que também pinta e desenha ou como um artista visual que às vezes faz uns discos? Vejo-me como um artista… Qual é aquela palavra africana que vocês usam, aqui em Portugal, para definir um homem velho, em calão? Cota? Sim, isso mesmo. É assim que me vejo, como um artista cota…