A história afro-americana, dos navios negreiros ao sofá de Oprah Winfrey
Pensado há cem anos, o Museu Nacional de História e Cultura Africana Americana abre hoje as portas em Washington.
Odiscurso de Michelle Obama empolgou a Convenção dos Democratas, em julho. “Essa é a história deste país. A história que nos fez chegar até este palco esta noite. A história de gerações que sentiram as chicotadas da servidão, a vergonha da escravidão, a picada da segregação, mas que continuaram a lutar, com esperança e fazendo o que era preciso fazer para que hoje eu possa acordar todas as manhãs numa casa que foi construída por escravos.” A primeira-dama dos EUA manifestava o seu apoio a Hillary Clinton e resumia, dois meses antes, o que se poderá ver no Museu Nacional de História e Cultura Africana Americana, que o marido, Barack Obama, inaugura hoje, em Washington.
Um edifício novo com vista para a Casa Branca, a meses do fim de um mandato histórico, o do primeiro presidente afro-americano e que há uma semana também entrou na campanha eleitoral. Barack Obama usou-o como resposta política a Donald Trump. O adversário de Hillary Clinton afirmou que nunca houve tempo pior para a população negra do que hoje. “Ele faltou à aula sobre escravatura e Jim Crow, mas temos um museu que pode visitar”, afirmou o presidente dos EUA. “Vamos educá-lo.”
Barack Obama esteve no lançamento da primeira pedra do museu, na Constitution Avenue, em 2012. Já era presidente quando o projeto começou a avançar, em 2009. Herdou-o de George W. Bush que em 1993 assinou a lei do Congresso que ditava a sua criação, já com atraso em relação às expectativas de quem primeiro o pensou: veteranos da guerra, em 1915. Um núcleo museológico, A Century in the Making (um século a fazer), procura falar desse longo processo que termina hoje com a inauguração do Museu Nacional de História e Cultura Africana Americana (MNHCAA).
Pelos seus dez andares, cinco deles subterrâneos, e 122 mil metros quadrados de construção, espalham-se 37 mil objetos, de várias Lonnie G. Bunch começou a
dirigir o museu em 2005 coleções, que falam de escravatura e libertação, a era da segregação, entre 1876 e 1968 , e o que veio depois da longa marcha pelos direitos civis. Com paragem obrigatória pelas artes, pelo desporto e pela música. De elevador até ao passado É pela história mais longínqua, no século XV, que começa a visita. Um elevador especial leva os visitantes a 21 metros de profundidade no edifício concebido pelo consórcio The Freelon Group, Adjaye Associates, Davis Brody Bond e o SmithGroupJJR.
Lingotes de ferro atestam o transporte de escravos em navios que cruzavam o Atlântico, de África à América do Norte e do Sul – uma parte da História que obriga a falar de Portugal.
Em depósito no MNHCAA por dez anos, as barras de ferro que podem ser vistas na exposição foram encontradas entre os destroços descobertos ao largo da Cidade do Cabo, entre 2010 e 2011. Pertenciam a um navio de carga português, o São José, que partiu de Lisboa para Moçambique com 1130 lingotes de ferro a bordo, segundo o registo do ano de 1764 encontrado no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, por investigadores da Universidade de Maputo
que colaboraram com o Slave Wrecks Project.
Os achados, encontrados pela equipa liderada pelo arqueólogo Stephen Lubkemann, pertencem ao museu Isiko, na África do Sul. Serviam de lastro para compensar o peso (leve) das pessoas que levavam a bordo. Encontrar o manifesto de carga no navio do comandante Manoel João, naufragado ao largo da Cidade do Cabo, foi fundamental para unir as pontas soltas desta história.
“Passei anos à procura de destroços de navios negreiros, como uma relíquia religiosa”, explicou ao Washington Post o diretor do MNHCAA. Por que razão eram tão importantes? “Eram a única prova tangível de que estas pessoas existiram”, explicou Lonnie G. Bunch III. Escravatura e segregação Aos navios seguem-se as plantações, de que é testemunho a cabana da primeira metade do século XIX que vem de Charleston, na Carolina do Sul, recriada no museu, graças a uma doação da Sociedade Edisto para a Preservação Histórica. Nas salas mostram-se também peças de roupa e grilhetas de crianças e ainda trajes do Ku Klux Klan ao lado de um sinal de whites only (apenas brancos). Um comboio mostra a separação entre brancos e negros nos transportes públicos e um vestido usado por Rosa Parks, a mulher que em 1955 recusou sentar-se nos lugares que estavam destinados a negros.
“O museu será mais do que uma coleção de objetos”, garante o diretor e fundador, antigo presidente da Sociedade de História de Chicago. Está à frente do museu desde 2005, e tem mostrado o seu acervo em exposições que circularam pelos EUA. “Este será um sítio que nos lembre onde estivemos, os desafios que ainda enfrentamos e que aponte para o que podemos vir a ser – um museu para todos os americanos”, escreve Lonnie G.Bunch numa carta pública.
Um comunicado do próprio museu, sublinha a sua importância: “Não podia chegar num momento mais significativo, com Obama no final do seu segundo mandato e as manifestações do Black Lives Matter cada vez maiores e mais apaixonadas”. Punha o dedo na ferida histórica. “É o reconhecimento institucional de más práticas, o reconhecimento de uma luta e, melhor do que tudo, o testemunho de um feito.”
Três outras galerias, com vistas mais desafogadas para a cidade de Washington, falam de artes, de desporto e de música. O Cadillac de Chuck Berry convive com a T-shirt usada por Michael Jackson na digressão de 1984, os sapatos de Sammy Davis Jr., o capacete de Muhammad Ali e os ténis de Michael Jordan. Os seus afundanços misturam-se com as imagens dos telediscos de Beyoncé.
O nome do basquetebolista aparece, também, com destaque, na lista, vasta, de pessoas e empresas que contribuíram para a construção do museu, a mais recente incorporação no universo Smithsonian (ver texto ao lado).
O museu custou 540 milhões de dólares, 481 milhões se falarmos em moeda europeia. Destes, 241 milhões de euros foram financiados pelo Congresso. O restante foi reunido com doações privadas. De fundações como a Bill e Melinda Gates a empresas como a Walmart ou Walt Disney.
Uma das mais importantes é a fundação de Oprah Winfrey. A mais popular apresentadora de televisão dos EUA doou 20 milhões de dólares (17,8 milhões de euros). Mais: cedeu o famoso sofá bege onde Tom Cruise saltou várias vezes proclamando o seu amor por Katie Holmes. O romance terminou, a peça de mobiliário tem garantida a eternidade.