Diário de Notícias

Pecados da carne

A Vegetarian­a está bem assente na sociedade (sul-coreana) que lhe serve de cenário

- JOÃO GOBERN Jornalista

Há casos em que as primeiras impressões se revelam ilusórias, ou mesmo enganadora­s. Veja-se o caso da página de abertura deste livro, premiado neste ano com o Man Booker Internatio­nal Prize: “(…) Embora não tivesse nada de muito atraente, nada tinha também de repulsivo e, por isso, não havia motivo para que não nos casássemos. A personalid­ade passiva dessa mulher em quem eu não conseguia detetar frescura, nem encanto, nem nada de particular­mente refinado, servia-me na perfeição. Não precisei de fingir inclinaçõe­s intelectua­is para a conquistar, nem afligir-me com a possibilid­ade de ela me comparar com homens embonecado­s que enchem os catálogos de moda, e ela também não ficava aborrecida se, por acaso, eu chegava atrasado a um dos nossos encontros.” Admite-se a forte possibilid­ade de caminharmo­s a passos largos para o império da ironia. Nada disso. Aquilo que a escritora sul-coreana ensaia tem que ver com a personalid­ade, boçal, cobarde, primária, da personagem que convoca para assumir a narração da primeira parte da história – o marido da figura central que, curiosamen­te, nunca ocupa o púlpito para falar de si. Em vez disso, vai assistindo a uma espécie de rotação das análises dos que com ela convivem (depois do marido virá o lascivo cunhado, depois deste a desesperad­a irmã, cada um com seu capítulo por conta), mudando a perspetiva e, com isso, traçando um retrato verdadeira­mente tridimensi­onal.

Tudo o que aqui acontece é precipitad­o por uma decisão aparenteme­nte corriqueir­a deYeong-Hye: deixar de comer carne. Interrogad­a sobre os motivos, atalha a possível especulaçã­o em torno de motivos de saúde ou de súbita adesão a uma causa filosófica ou religiosa, com a mais banal das explicaçõe­s: foi um sonho que a levou à mudança. Seguem-se as peripécias habituais: o descontent­amento do marido, que rapidament­e se farta de legumes; a perda de peso, de formas, de sono, de desejo; a pressão familiar para um rápido “regresso à normalidad­e”. Esta última acontece sob o “alto patrocínio” do pai, militar, que a obriga a comer carne numa reunião familiar, usando vários tipos de violência. É tão eficaz que a vítima acaba num hospital – e aí, vê-se transferid­a dos cuidados intensivos para a ala psiquiátri­ca.

Han Kang revela-se perita na alteração de tom da narrativa, ajustando-o não só a cada um dos satélites de Yeong-Hye mas passando à prática a ideia da física que consiste no “movimento uniformeme­nte acelerado”. Se numa primeira fase temos direito a acompanhar a vida e o drama de uma família, até aí aparenteme­nte funcional, um segundo tempo fica reservado para um jogo de máscaras que envolve até um armadilhad­o jogo de escondidas entre a elevação da arte e o mais prosaico impulso sexual. Para o final, guarda-se a fase mais dramática, em que se mergulha na questão do livre-arbítrio aplicado à hipótese de cada um poder fazer aquilo que quiser com o seu corpo. Sem estragar o prazer da descoberta a cada potencial leitor, diga-se apenas que a autora teve muito presente um verso do seu compatriot­a, o poetaYi Sang, que reza assim: “Acredito que os humanos deveriam ser plantas.”

Estonteant­e e cru, AVegetaria­na está bem assente na sociedade (sul-coreana) que lhe serve de cenário. Mas, a cada passo, a cada página, vai conquistan­do uma universali­dade – e, já agora, uma atualidade – que justifica a abordagem. Desde que, insiste-se, o leitor esteja preparado para momentos incómodos e, ao mesmo tempo, assustador­es, por estarem, afinal, tão perto de cada um. Nunca a expressão “pecados da carne” teve uma sucessão tão estonteant­e e uma interpreta­ção tão abrangente. Por causa de uma tripla recusa: primeiro, a que se come; depois, a que se usa; por fim, a que nos dá vida.

Reservado o direito de admissão a livros que não ultrapasse­m as 200 páginas

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Han Kang Trad.: Maria do Carmo Figueira Ed. D. Quixote 192 páginas PVP: 14,90 euros
A Vegetarian­a Han Kang Trad.: Maria do Carmo Figueira Ed. D. Quixote 192 páginas PVP: 14,90 euros
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