Pecados da carne
A Vegetariana está bem assente na sociedade (sul-coreana) que lhe serve de cenário
Há casos em que as primeiras impressões se revelam ilusórias, ou mesmo enganadoras. Veja-se o caso da página de abertura deste livro, premiado neste ano com o Man Booker International Prize: “(…) Embora não tivesse nada de muito atraente, nada tinha também de repulsivo e, por isso, não havia motivo para que não nos casássemos. A personalidade passiva dessa mulher em quem eu não conseguia detetar frescura, nem encanto, nem nada de particularmente refinado, servia-me na perfeição. Não precisei de fingir inclinações intelectuais para a conquistar, nem afligir-me com a possibilidade de ela me comparar com homens embonecados que enchem os catálogos de moda, e ela também não ficava aborrecida se, por acaso, eu chegava atrasado a um dos nossos encontros.” Admite-se a forte possibilidade de caminharmos a passos largos para o império da ironia. Nada disso. Aquilo que a escritora sul-coreana ensaia tem que ver com a personalidade, boçal, cobarde, primária, da personagem que convoca para assumir a narração da primeira parte da história – o marido da figura central que, curiosamente, nunca ocupa o púlpito para falar de si. Em vez disso, vai assistindo a uma espécie de rotação das análises dos que com ela convivem (depois do marido virá o lascivo cunhado, depois deste a desesperada irmã, cada um com seu capítulo por conta), mudando a perspetiva e, com isso, traçando um retrato verdadeiramente tridimensional.
Tudo o que aqui acontece é precipitado por uma decisão aparentemente corriqueira deYeong-Hye: deixar de comer carne. Interrogada sobre os motivos, atalha a possível especulação em torno de motivos de saúde ou de súbita adesão a uma causa filosófica ou religiosa, com a mais banal das explicações: foi um sonho que a levou à mudança. Seguem-se as peripécias habituais: o descontentamento do marido, que rapidamente se farta de legumes; a perda de peso, de formas, de sono, de desejo; a pressão familiar para um rápido “regresso à normalidade”. Esta última acontece sob o “alto patrocínio” do pai, militar, que a obriga a comer carne numa reunião familiar, usando vários tipos de violência. É tão eficaz que a vítima acaba num hospital – e aí, vê-se transferida dos cuidados intensivos para a ala psiquiátrica.
Han Kang revela-se perita na alteração de tom da narrativa, ajustando-o não só a cada um dos satélites de Yeong-Hye mas passando à prática a ideia da física que consiste no “movimento uniformemente acelerado”. Se numa primeira fase temos direito a acompanhar a vida e o drama de uma família, até aí aparentemente funcional, um segundo tempo fica reservado para um jogo de máscaras que envolve até um armadilhado jogo de escondidas entre a elevação da arte e o mais prosaico impulso sexual. Para o final, guarda-se a fase mais dramática, em que se mergulha na questão do livre-arbítrio aplicado à hipótese de cada um poder fazer aquilo que quiser com o seu corpo. Sem estragar o prazer da descoberta a cada potencial leitor, diga-se apenas que a autora teve muito presente um verso do seu compatriota, o poetaYi Sang, que reza assim: “Acredito que os humanos deveriam ser plantas.”
Estonteante e cru, AVegetariana está bem assente na sociedade (sul-coreana) que lhe serve de cenário. Mas, a cada passo, a cada página, vai conquistando uma universalidade – e, já agora, uma atualidade – que justifica a abordagem. Desde que, insiste-se, o leitor esteja preparado para momentos incómodos e, ao mesmo tempo, assustadores, por estarem, afinal, tão perto de cada um. Nunca a expressão “pecados da carne” teve uma sucessão tão estonteante e uma interpretação tão abrangente. Por causa de uma tripla recusa: primeiro, a que se come; depois, a que se usa; por fim, a que nos dá vida.
Reservado o direito de admissão a livros que não ultrapassem as 200 páginas