Diário de Notícias

Um romance em que Caravaggio é pintado para além do perfil do costume

Cristina Drios usa Palermo no presente e no passado como cenário de um romance que se lê de uma vez só

- JOÃO CÉU E SILVA Jornalista

Osegundo romance de Cristina Drios continua a surpreende­r como já acontecera com o primeiro, Os Olhos de Tirésias. Chama-se Adoração e tem logo essa grande vantagem pouco habitual nos autores contemporâ­neos, que é o de darem um nome simples aos seus livros. Mas Drios fá-lo, tal como o continua a fazer nas 201 páginas uma boa narrativa, que combina a evocação de um tempo do século XVII com o da quase atualidade.

Pois é disso que trata Adoração, que combina um princípio de há ainda pouco tempo que acontece na Sicília, mais propriamen­te em Palermo, e depois volta a esta mesma cidade aquando da estada do pintor Caravaggio por uns quantos dias no seu convento franciscan­o em maio de 1609 durante os quais pintou a tela Natividade com S. Francisco e S. Lorenço, mais conhecida por A Adoração, de onde vem parte do título deste romance, a troco de mil scudi enquanto esperava por um indulto do papa.

Não é um romance histórico na sua verdadeira aceção, mas também não é totalmente contemporâ­neo. É assim um pouco de uma coisa e de outra, o que lhe dá um gosto literário que deverá agradar tanto ao leitor culto como ao mais despretens­ioso. Mesmo que o primeiro deles se irrite com a maior parte das notas de pé de página dispensáve­is para si, enquanto ao segundo farão falta. Também não é um policial, mesmo que tenha uma estrutura investigat­ória, até inquisitor­ial, que às vezes coincide um pouco com esse género, que mais não é do que a forma literária que Cristina Drios encontrou para iludir o leitor e obrigá-lo a ler o seu esforço literário.

E essa parte é muito bem conseguida pois a atualidade inicial torna-se urgente quando a segunda parte começa e revive a vida do famoso pintor. Depois, nas partes que se sucedem em alternânci­a, vai-se voltando tanto à Palermo atual como à antiga.

Diga-se que Adoração bem podia ter o dobro da dimensão com que ficou, pois o leitor quase exige mais de ambos os tempos retratados. De qualquer modo é melhor ter um bom romance do que um texto esticado à custa de situações desnecessá­rias se não estiverem à altura do que agora Drios dá a ler. Até porque se a parte antiga possui o tamanho necessário, a que só poderá faltar um pouco mais de um olhar sobre a oficina do trabalho artístico do pintor, o da sua conceção cerebral ou instintiva do que estava a pintar, já a atualidade merecia-o. Afinal, a conceção da narrativa que assenta no roubo de A Adoração de Caravaggio em 1969 do local onde permanecer­a à vista de poucos durante 360 anos, fica muito bem resguardad­a para o final, desembrulh­ando-se a charada em que o leitor estava metido desde a primeira página apenas nas últimas. Será esse, no entanto, o grande truque do livro: deixar o leitor a pedir por mais.

O começo do romance de Cristina Drios é muito bom, enquadrand­o a protagonis­ta e o seu “comparsa” polícia, bem como o falso motivo do cão perdido como razão para uma fuga quase adolescent­e. O mesmo acontece à página 70, quando o salto de poucas horas no tempo coloca a intriga do romance num grande volte-face inesperado. Onde o pretexto do cãozinho será desmistifi­cado. Mas mesmo assim, a reviravolt­a que surpreende­rá e reúne todas as pontas, só aparecerá à página 183. E aí, é de uma vez só que se lê Adoração, pois há urgência em compreende­r como será o resultado dos malabarism­os literários que a autora vinha a realizar ao longo do romance.

Interessan­te também é o período do presente escolhido para esta Itália enquanto cenário, o ano de 1992, onde se encontram os acontecime­ntos perfeitos para colocar todas as peças deste xadrez em movimento. Mais não se revela, agora é momento de ler Adoração, que na próxima semana chegará às livrarias.

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Cristina Drios Editora Teorema 216 páginas PVP: 16,50 euros
Adoração Cristina Drios Editora Teorema 216 páginas PVP: 16,50 euros
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