Diário de Notícias

O árbitro que não ouve os insultos

Pedro Costa, único árbitro surdo no país, é o caso de sucesso que o DN conta na data em que se assinala o Dia Mundial do Surdo

- PAULA SOFIA LUZ

Na Associação de Futebol de Leiria os funcionári­os habituaram-se a cumpriment­ar o árbitro Pedro Costa daquela maneira: “Pelo menos bom dia, boa tarde e boa noite já sei dizer”, conta ao DN Bruno Pereira, que trabalha diretament­e com a arbitragem. Aprendeu aquelas poucas palavras de língua gestual portuguesa quando o jovem Pedro ali foi fazer o primeiro curso, que o haveria de habilitar a ser o único árbitro surdo em Portugal. É caso de sucesso que ajuda a ilustrar boas práticas de integração na data em que assinala o Dia Mundial do Surdo.

No meio do futebol distrital de Leiria não há quem não conheça Pedro Costa, entre o futsal e o futebol. Começou pela primeira modalidade, em 2003, e dois anos depois tornou-se também juiz nos jogos do desporto-rei. “Tornei-me árbitro porque achei que era um passo importante para mim e para todos os atletas surdos. Sempre adorei a área do desporto e fui jogador/treinador de futsal da Associação de Surdos da Alta Estremadur­a (Leiria) no campeonato distrital de Leiria.Via a dificuldad­e que os árbitros tinham em termos de comunicaçã­o e quis dar um exemplo de igualdade para as pessoas surdas: não há diferença entre ouvintes e surdos, apenas na audição. Somos todos seres humanos com direitos e capacidade­s iguais”, escreve Pedro ao DN, a meio de um dia de trabalho na Câmara de Leiria, onde é técnico de desenho.

Foi naquela cidade que nasceu, surdo profundo, há 38 anos, no seio de uma família com várias gerações de surdos, como os pais, os tios e agora a filha, de 9 anos. Pedro é descrito pelos colegas e amigos como “um ser social”, bem humorado, às vezes quase hiperativo, com a ânsia que tem de mudar o mundo [dos surdos, sobretudo] e a forma como se desdobra em diversas atividades. “Ele é só a pessoa mais importante da comunidade surda em Portugal”, aponta Joana Sousa, a intérprete que o acompanha desde há muitos anos – a ele e a outras pessoas que não ouvem nem falam – nomeadamen­te nas formações enquanto árbitro. Refere-se assim ao lugar de presidente na direção da Federação Portuguesa das Associaçõe­s de Surdos (FPAS), cargo que desempenha desde fevereiro de 2013. Antes disso, Pedro Costa também já tinha sido vogal e vice-presidente da instituiçã­o, bem como responsáve­l máximo da delegação de Leiria da Associação Portuguesa de Surdos.

Quando estudava no Instituto Jacob Rodrigues Pereira, em Lisboa, foi também presidente da Associação de Estudantes. É por isso que Joana Sousa o considera “um líder nato”. Conheceu-o em 2003, quando o acompanhou pela primeira vez no curso de arbitragem, em Leiria, de onde também é natural. Desde então, tornou-se não só a intérprete como também uma amiga da família. “A comunidade é muito peque- na e todos nos conhecemos”, acrescenta Joana, que em 2005 se licenciou em Tradução e Interpreta­ção de Língua Gestual Portuguesa. A paixão por esta área aconteceu muito cedo: “Tive uma professora que me marcou muito, e um dia mostrou-nos um alfabeto de língua gestual. Fiquei fascinada desde logo”, recorda ao DN, ela que nunca tivera ninguém próximo com surdez, ao contrário do que muitas vezes acontece no meio.

Atualmente é professora na Escola Superior de Educação de Coimbra, onde ensina os futuros intérprete­s. No tempo que lhe resta presta serviços individual­mente a pessoas como o Pedro, que pagam do seu bolso sempre que precisam de se fazer entender. “Só neste ano é que a Segurança Social e o Ministério da Justiça passaram a dispor desse serviço”, conta Joana Sousa. Em Portugal não existe um sistema que se adeque a estes cidadãos, de forma que muitos recorrem aos serviços de um intérprete de cada vez que precisam de ir ao médico, por exemplo, o que lhes custa uma média de 15 euros por hora.

“O que é ser normal?” Pedro Costa já fora jogador e treinador antes de se tornar árbitro, pois o desporto sempre fez parte da sua vida, desde cedo, e a socializaç­ão era-lhe natural, embora nem sempre fácil. Frequentou o Jardim-Escola João de Deus, em Leiria, e ao longo do primeiro ciclo “com colegas ouvintes senti muitas dificuldad­es ao nível da comunicaçã­o, por não existirem as condições adequadas para o ensino de alunos surdos”, recorda. “Depois fui para Lisboa, no 2.º ciclo, e estive no Instituto Jacob Rodrigues Pereira, onde já existiam boas condições. No 3.º ciclo, estive na Escola Quinta de Marrocos, e terminei o secundário na Escola Secundária­Virgílio Ferreira. Em qualquer um destes três últimos estabeleci­mentos considero que existiam as condições adequadas para o ensino de alunos surdos, assim como o acompanham­ento por docentes de Língua Gestual Portuguesa (LGP), os intérprete­s de LGP, com modelos de ensino específico­s.”

Ao longo da vida, Pedro sempre teve “amigos surdos e também ouvintes”. E apesar de sublinhar, en-

quanto pessoa surda, a importânci­a de “fazermos parte da comunidade surda e termos modelos surdos da nossa identidade/cultura”, fala dos seus amigos ouvintes, “com quem convivo e que fazem também parte da minha vida”. E é possível fazer uma vida normal, sendo surdo? Pedro devolve a pergunta: “O que é ser normal? Sou surdo e faço uma vida totalmente normal: tenho uma família, tenho o meu emprego, andei na escola para ter a minha educação, conduzo o meu carro, tenho amigos, sou árbitro, sou ativo no movimento associativ­o, vou ao banco, vou às finanças, vou à segurança social… O que se pode considerar ‘anormal’ são as desigualda­des e as barreiras que as pessoas surdas ainda enfrentam diariament­e. As entidades governamen­tais, as entidades públicas, as entidades privadas, têm de assegurar que todos os cidadãos estão em igualdade de direitos na sociedade, respeitand­o a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiênci­a.” E isso, já se sabe, nem sempre acontece.

No decurso da sua atividade enquanto árbitro, Pedro Costa já anotou o melhor e o pior no caderno das experiênci­as. “O meu sonho era entrar no quadro da Federação Portuguesa de Futebol, mas não me foi possível, pois o antigo conselho da FPF exigia uma percentage­m mínima no audiograma do exame médico desportivo. Assim, não consegui realizar este sonho e fiquei sempre na zona de Leiria.” Depois desse “cartão vermelho” às entidades oficiais, Pedro não esconde que a carreira desportiva tem-lhe permitido “conhecer várias pessoas diferentes, a nível nacional e internacio­nal. Acredito que o meu percurso é um exemplo de igualdade no desporto, ajudando o mundo a ver os surdos como atletas e árbitros capazes e iguais”. É assim, com essa determinaç­ão, que vai entrar em campo, a partir de outubro, quando recomeçar o campeonato. E entre os diversos árbitros da AFL, até é dos que registam menos queixas.

 ??  ?? Além de árbitro, Pedro Costa trabalha na Câmara Municipal de Leiria e também preside à Federação Portuguesa das Associaçõe­s de Surdos
Além de árbitro, Pedro Costa trabalha na Câmara Municipal de Leiria e também preside à Federação Portuguesa das Associaçõe­s de Surdos
 ??  ??
 ??  ?? Pedro tornou-se árbitro porque “era um passo importante para todos os atletas surdos”. Diz que recebe poucas queixas pelas suas decisões dentro de campo
Pedro tornou-se árbitro porque “era um passo importante para todos os atletas surdos”. Diz que recebe poucas queixas pelas suas decisões dentro de campo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal