Diário de Notícias

Dez dias em que Portugal proibiu a entrada de refugiados judeus

Em 1940, comboio com três centenas de refugiados do Luxemburgo foi obrigado a regressar a Espanha após um incidente diplomátic­o criado por agentes armados da Gestapo

- MANUEL CARLOS FREIRE

Quase três centenas de refugiados judeus saídos do Luxemburgo em novembro de 1940 ficaram dez dias retidos na fronteira de Vilar Formoso e foram depois proibidos de entrar em Portugal, mas não existe documentaç­ão sobre o caso nos arquivos nacionais, disse ontem a historiado­ra Irene Pimentel ao DN.

“Na imprensa portuguesa não há nada. Os elementos do governo luxemburgu­ês que estiveram em Portugal foram ao Ministério dos Negócios Estrangeir­os, dirigiram-se a Salazar, à PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, antecessor­a da PIDE]. Tem de haver cartas, documentaç­ão escrita... não sabemos se foi perdida, destruída ou está fora do lugar”, lamentou Irene Pimentel, coautora do recém-lançado livro O Comboio do Luxemburgo com a também historiado­ra Margarida Ramalho, sobre um episódio ocorrido na fronteira de Vilar Formoso em novembro de 1940.

Pelo contrário, no Luxemburgo “encontrámo­s bastantes coisas. Já há uma historiogr­afia luxembur- guesa que trata o assunto” e as próprias autoridade­s locais deram apoio ao trabalho das duas investigad­oras – o qual envolveu também a ida aos EUA, com a ajuda da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvi­mento (FLAD), assinalou Irene Pimentel.

O caso evoca de imediato o drama das dezenas de milhares de refugiados que fogem das guerras e conflitos no Médio Oriente e África em direção à Europa, onde vários países – sob forte pressão das respetivas opiniões públicas e eleitorado­s – têm vindo a recusar a sua admissão e até a levantar barreiras para impedir a sua passagem em direção a outros destinos.

“A história não se repete da mesma forma mas há aspetos” em que isso acontece, como ocorre agora na UE, em que as barreiras de arame farpado para impedir a passagem de refugiados evocam o tempo em que “a Europa fechou a porta” aos judeus fugidos da II Guerra Mundial, argumentou Irene Pimentel. “Nunca é da mesma forma mas há aspetos que se repetem porque o ser humano não mudou”, acrescento­u.

Outro dos “aspetos idênticos” entre a situação atual e o ocorrido na Guerra de 1939-1945, salientou Irene Pimentel, prende-se com o receio sobre a presença de terrorista­s do Estado Islâmico entre os refugiados. “Nos Estados Unidos não deixaram entrar judeus refugiados por temer que houvesse alemães infiltrado­s. Havia antissemit­ismo, xenofobia, racismo...” – o que não sucedia em Portugal e foi um aspeto a facilitar a entrada de muitos refugiados que fugiam da máquina de guerra nazi.

Recorde-se que a fronteira de Vilar Formoso foi ponto de passagem para muitos desses fugitivos, estando em curso um projeto de construção do Museu Vilar Formoso Fronteira da Paz – Memorial aos Refugiados e Cônsul Aristides de Sousa Mendes, junto à estação ferroviári­a daquela localidade. Margarida Ramalho foi a comissária científica desse futuro museu, que a autarquia prevê estar concluído no final deste ano.

Agentes da Gestapo A ausência de registos escritos em Portugal sobre aquele comboio retido em Vilar Formoso, com 293 judeus que viajaram em oito autocarros entre o Luxemburgo e Espanha, explica-se por ser “um episódio que mancha a imagem” do país como espaço de acolhiment­o de refugiados.

“A seguir ao final da II Guerra Mundial, o interesse que havia da parte de Salazar e do regime era sobreviver à derrota do nazi-fascismo, dizendo que Portugal tinha salvado refugiados e abriu as portas” a muita gente, contou Irene Pimentel. Porém, acrescento­u a historiado­ra, “como qualquer país e até os democrátic­os, a ditadura portuguesa tinha até ao início da guerra uma política restritiva da entrada de refugiados. Salazar disse sempre que Portugal era um país de trânsito, em que tinha de se ter visto para um país de destino e permanecer apenas o tempo necessário para arranjar navio”.

O certo é que “o comboio trágico” de Vilar Formoso, como o clas- sificou Irene Pimentel ao registar que meia centena desses refugiados “foram deportados e morreram no Holocausto”, acabou por ser uma exceção face ao “conjunto de circunstân­cias” que se verificara­m naquele momento e conduziram àquele desfecho.

É verdade que já tinham entrado em Portugal dois comboios com refugiados judeus oriundos do Luxemburgo, nos meses de agosto e outubro de 1940 – apesar das dificuldad­es que este último teve para passar a fronteira. E mesmo no de novembro houve negociaçõe­s para acolher os passageiro­s – mas foi tudo por água abaixo devido à presença da Gestapo.

“Desta vez os alemães decidiram acompanhar o grupo [de judeus] até território português. E foi aí que as coisas se complicara­m. Além de ser um grupo extenso, de quase 300 judeus (maioritari­amente apátridas [a viverem no Luxemburgo após fugirem de países como Alemanha ou Polónia] e portadores de vistos duvidosos), vinha acompanhad­o por elementos fardados e armados pertencent­es a um país beligerant­e, o que era totalmente contra os princípios da neutralida­de”, lê-se no livro.

“As autoridade­s da fronteira portuguesa reagiriam e não deixariam sair ninguém do comboio enquanto não houvesse uma solução para os passageiro­s. Enquanto a polícia portuguesa encetava negociaçõe­s (...), alguns soldados alemães que tinham entrado em território português recusaram-se a entregar as armas e foram detidos. Pouco depois, mais soldados alemães cruzaram a fronteira para ver o que se passava e acabaram também detidos”, escrevem as autoras.

“A situação só se resolveria depois da intervençã­o do embaixador alemão em Madrid. Este incidente diplomátic­o terá, porventura, impedido uma solução mais tolerante para os passageiro­s do terceiro transporte”, argumentam Irene Pimentel e Margarida Ramalho, que analisaram “documentos inéditos” e entrevista­ram “sobreviven­tes e seus familiares”.

A obra cita também a carta de agradecime­nto que um dos sobreviven­tes, Henri Galler (então com 5 anos), enviou em 2013 aos responsáve­is pelo futuro museu de Vilar Formoso: “Lembro-me de que não podíamos sair nunca do comboio (...). Muitos anos mais tarde, a minha mãe explicou-me que foram os habitantes dessa terra que prestaram ajuda aos refugiados que estavam naquele comboio, trazendo-lhes água e comida.”

Vilar Formoso vai ter museu sobre refugiados e cônsul

de Bordéus

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Crianças refugiadas em trânsito no porto de Lisboa, a 19 de agosto de 1941, preparadas para embarcar no navio português SS Mouzinho

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