Diário de Notícias

Esta semana mesmo vão entrar os mestres e pôr-se a destruir os fornos

- JOEL NETO Escritor Terça-feira, 20 de Setembro

Passaram-se quatro dias e já há pontinhos brancos anunciando o bolor. Mesmo assim, agarro numa faca afiada e esforço-me por fazer-lhe a mais delicada incisão de que for capaz – o suficiente apenas para lhe extrair a infestação sem desperdiça­r massa.

Agora já estou arrependid­o de não ter comprado mais seis ou sete, congelando-os inteiros e aos bocados – oferecendo-me a oportunida­de de, a cada acesso de saudade, ir à arca, tirar um pedaço, cortá-lo às fatias e untá-las com manteiga. Acabei por trazer apenas três: um para nós, um para os meus pais e outro para oferecer ao Chico. Tudo o mais seria uma medida a prazo, e, de qualquer modo, o escritor tem a vantagem da memória, onde aquele pão poderia continuar a viver em liberdade – inclusive metamorfos­eando-se no que quisesse, formando outros pães, momentos de deleite e aconchego, invocações dos nossos mortos.

Mas agora estou aqui, dobrado sobre o derradeiro bocado, e pergunto-me se ainda terá sobrado alguma coisa aos meus pais. Ainda por cima acabou-se-me a manteiga, pelo que estou reduzido a um daqueles cremes para barrar que fazem bem às coronárias e ao sentimento de culpa.

É o último pão que como feito pela D. Maria de Fátima. Depois de trinta anos a cozê-lo na garagem, com a mesma receita que usavam os seus antepassad­os, a D. Maria de Fátima fechou a pequena padaria. E nem vale a pena esperar que, de vez em quando, faça uma fornada para os clientes mais saudosos: esta semana mesmo vão entrar os mestres e pôr-se a destruir os fornos e as tijoleiras.

A D. Maria de Fátima tem uma pensão pequena. Precisa de rentabiliz­ar o espaço que lhe sobra – talvez possa mesmo fazer um pequeno apartament­o, para alunos do pólo universitá­rio ou assim. É o fim de um ciclo. – Não vou cozer mais pão, senhor Joel – diz-me, consciente da gravidade que a informação tem para mim e da minha consciênci­a da gravidade que a decisão tem para ela. – Não posso mais. Já fui dar baixa às Finanças e tudo. Amanhã é o último dia.

Di-lo primeiro devagar, como que testando-me, e depois tudo de uma vez, para não deixar dúvidas quanto à irrevogabi­lidade do que diz. Eu percebo logo que não há nada a fazer e chego-me para trás. Encosto-me à beira da sua bancada, indiferent­e à farinha que me suja as calças, e fico ali a ouvi-la – apenas a ouvi-la, como poucos ao longo dos anos.

Aguentou tudo, a D. Maria de Fátima. Criou filhos e netos, primeiro acompanhad­a e depois só. Caiu e levantou-se. Aquela cozinha subterrâne­a era o seu domínio. Nunca sequer foi à mercearia que fica cem metros acima: era na sua cozinha que se sentia bem e era a partir da sua cozinha que ia enfrentand­o as vicissitud­es do envelhecim­ento, da burocracia e da degradação das gerações.

Até que uma última vicissitud­e se revelou vicissitud­e a mais.

Chorou ali, a D. Maria de Fátima, enquanto conversava comigo. Eu dei-lhe dois beijinhos, como à avozinha perfeita – a senhora de 80 anos, de bata e olhos vivos, daquelas que nos chamam a um canto da cozinha e erguem a borda de um pano, maliciosas, a descobrir uma guloseima – e pedi-lhe que me deixasse visitá-la uma vez por outra.

Voltei pela Boa-Hora, muito devagar, com o rádio do carro desligado, numa espécie de solenidade que era também pelo fim de outras coisas – tantas coisas, muito mais coisas do que uma padaria ou uma receita de pão de milho.

Parei à porta dos meus pais e apitei. A minha mãe veio à porta, eu passei-lhe o pão dela e expliquei-lhe que era o último. A D. Maria de Fátima ia fechar. – Ah, coitada – disse. E agora estou aqui, debruçado sobre este último pedaço, já velho mas capaz ainda de ser extirpado do bolor, e posto na torradeira, e talvez até viver mais um dia ainda, se eu lhe conseguir fazer as incisões certas. Tenho sobretudo pena de não haver manteiga, e a esta hora o Américo ainda não abriu a venda.

Quanto ao mais, tudo se acaba e a cada coisa encerra-se algum tipo de ciclo. Doeu-me sobretudo que as pessoas a quem contei do fim da padaria da D. Maria de Fátima tenham, em tantos casos, encolhido os ombros. Doeu-me que a minha mãe, que me ensinou o amor à terra e ao próprio pão da D. Maria de Fátima, tenha dito apenas: – Coitada. Mas cada um de nós deplora o fim à sua própria maneira, e o mais provável é que ainda tenhamos muitas conversas, anos fora, sobre um certo pão perfeito que fazia aquela velhinha maravilhos­a ali às Bicas de Cabo Verde.

Ou isso ou a D. Maria de Fátima nunca existiu. Fui eu que a inventei – nestas crónicas, nos livros, nos desfiladei­ros de uma memória tortuosa. Mas acho difícil: nunca a minha imaginação conseguiu ser tão redentora e ideal.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

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