Talentos inesperados do fado silenciaram plateias em Alfama
A convite do Caixa Alfama, que decorreu neste fim de semana, o músico Jorge Fernando andou pelas ruas do bairro em busca de talentos desconhecidos para o Palco Inesperado
Maria Ramos, 15 anos, silencia a plateia curiosa que veio ao Alfama Grill para a ouvir cantar. A ela, Lucas Calapez e Maria Ferreira ( Tininha), que dividem o palco no restaurante, na primeira noite do festival, na sexta-feira. Fernando Oliveira, Susana Cardoso e a jovem Ana Margarida formam o segundo grupo que se apresentou ontem. Esta oportunidade é o resultado de uma iniciativa inédita do festival que contou com a ajuda de Jorge Fernando.
No dia 16, sexta-feira, o músico percorreu as ruas à procura de novos talentos que tivessem a “alma na voz”. O cantor conhece bem estas ruas, desde os 16 anos que trabalha com fado, e as constantes paragens para abraços ou elogios desgarrados são prova disso mesmo. “Sou do bairro. Aqui, é assim”, diz enquanto aperta com firmeza a mão do amigo de longa data, o fadista Miguel Ramos. A filha deste é Maria, uma das finalistas. A sua voz reflete a juventude, mas não é por isso que deixa de impressionar. O pai, e também o professor, é o verdadeiro impulsionador de uma paixão que se prevê para a vida. Um ano mais velha do que Maria, Ana Margarida, 16 anos, tem um timbre que arrepia. A cantar desde os 7 anos no restaurante dos pais, o fado sai-lhe naturalmente. Afinal, foi ali que cresceu (ainda cresce), entre fadistas.
“Há tantas vozes tão boas”, diz Jorge Fernando, enquanto desce a Rua de São João da Praça, onde fica o restaurante Porta d’Alfama. A proprietária, Tininha, é conhecida pela simpatia e por ser a autoproclamada “fã número um” de Jorge Fernando. Dois turistas franceses gritam-lhe “bravo”, entre aplausos, quando termina a audição, abraçada ao ídolo.
Quando subiu ao palco na passada sexta-feira, é a Jorge Fernando que agradece primeiro. Depois ao seu bairro. Esse lugar que a viu crescer e a quem dedica os dois fados que canta com tanta vontade. Porque “Alfama é linda, é a minha casa”, vai dizendo entre abraços aos amigos que vieram torcer “pela fadista com mais alma que anda por aqui”. Este bairrismo é aplaudido com entusiasmo por uma plateia em que se misturam admiradores de línguas diferentes. “Não é preciso perceber o fado para o sentir”, ouve-se pelas conversas.
Com uma carreira com mais de quatro décadas ligada ao fado, Jorge Fernando tornou-se um dos guitarristas de Amália Rodrigues com apenas 20 anos. Fernando Maurício, Celeste Rodrigues ou Maria da Fé são alguns dos nomes emblemáticos que o cantor acompanhou. Em 1985, participou no Festival RTP da Canção com o emblemático Umbadá (ficou em quarto lugar). Além do percurso a solo como fadista, é também reconhecido por ser um dos letristas mais respeitados do meio, tendo escrito letras para Nuno da Câmara Pereira, Carminho ou Mariza, entre outros. É também o responsável pelo lançamento de nomes como Ana Moura ou Fábia Rebordão.
No Coração da Sé, na Travessa do Almargem, há uma parede pintada com retratos de fadistas, e Jorge Fernando é um deles. Debaixo do seu perfil pode ler-se um dos seus versos: “No peito abre um suspiro e o povo entoa/ Só há uma Lisboa, só há uma Lisboa./ Consigo traz um mistério bem guardo,/ Chamam-lhe fado, chamam-lhe fado.” É ali que é recebido em abraços por Fernando Oliveira, 73 anos, relações-públicas do espaço e também candidato ao Palco Inesperado, porque canta o fado “desde antes de vocês nascerem, meus queridos”.
Entre amigos ou desconhecidos, entre versos de Amália ou fado falado, a procura por Alfama reuniu vozes que em comum têm a paixão pela canção nacional. “A escolha não foi fácil, mas acho que eles não vão desiludir”, diz Jorge Fernando, depois de escolhidos os finalistas. Não desiludiram, a julgar pelos aplausos efusivos de quem sente a força do fado.