Diário de Notícias

“Soares foi o primeiro líder a ir a Praga apoiar a Revolução de Veludo”

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Entrevista. Michael Zantovsky, que foi porta-voz do dissidente que se tornou presidente checoslova­co e depois checo, conta como Václav Havel ficou emocionado com carro oferecido por Soares. MUNDO

Que memórias pessoais guarda de Václav Havel? Tenho uma longa lista de memórias dele. Já éramos amigos antes de 1989 e da Revolução de Veludo. Tínhamos amigos em comum, partilháva­mos gostos musicais, na literatura, no teatro. Éramos muito chegados. Desde o início, Václav Havel impression­ou-me como pessoa excecional, bondosa, educada e humilde. Uma pessoa que não estava cheia de si mesma, que sabia ouvir as outras pessoas, que não tentava elevar-se acima dos outros, e ainda assim era um líder. Foi alguém que influencio­u e inspirou grande número de pessoas para apoiar a causa das mudanças democrátic­as na Checoslová­quia. E depois da revolução tornou-se meu chefe. Eu era porta-voz e secretário de imprensa, por isso lutámos juntos durante os dois anos e meio seguintes, e mais uma vez ele era uma pessoa excecional­mente bondosa e atenciosa. Bem, ele era muito bom estudante de Política Internacio­nal e estava consciente das mudanças democrátic­as em Portugal em 1974, e depois em Espanha, porque estava sempre à procura de inspiração noutros países. Havel trabalhou de perto com alguns dos movimentos democrátic­os noutros países anteriorme­nte comunistas, como o Solidaried­ade na Polónia e a oposição democrátic­a húngara. E em dezembro de 1989, Mário Soares foi o primeiro chefe de Estado estrangeir­o que veio a Praga apoiar a revolução e Havel falava disso bastante e estava muito orgulhoso de isso ter acontecido. Eu, já nesta minha visita a Lisboa, estava a olhar para alguns dos documentos e descobri que o Fórum Cívico, que era o comité revolucion­ário, convidou o presidente Soares a visitar a Checoslová­quia a 27 de dezembro de 1989 e ele veio a 28. E se eu pensar quanto tempo demora a preparar visitas presidenci­ais, isto é extraordin­ário. Mais tarde, claro, vim cá com o presidente Havel em dezembro de 1994, na sua primeira visita oficial a Portugal, e ele encontrou-se outra vez com Soares. É possível dizer que realmente havia uma relação de amizade? Sim, Havel via Soares como um amigo. Foi uma expressão muito comovente de apoio que ele recebeu em 1989 dos estudantes portuguese­s que vieram a Praga, como Álvaro Beleza e [José Pedro] Aguiar-Branco, e pessoalmen­te do presidente Soares, que não só veio mas também doou uma limusina, um carro Renault, para Havel ter a sua primeira limusina presidenci­al oficial. Logo sentiu-se muito grato pelo seu apoio e via-o como um amigo. É possível dizer que Václav Havel não é apenas um herói da República Checa, mas um dos maiores líderes europeus da segunda metade do século XX? Eu represento a Fundação Biblioteca Václav Havel, cujo trabalho é promover e preservar o legado de Havel, por isso não me cabe a mim dizer, é para outras pessoas dizerem, mas, pelo que oiço e vejo por todo o mundo, quando vou falar sobre Havel, quando vou a conferênci­as, ele é visto como o exemplo de um verdadeiro líder democrátic­o, que conseguiu enormes mudanças através de meios não violentos e que deixou um enorme legado de governação responsáve­l. Ele não foi um tipo nacionalis­ta de líder e estava consciente da necessidad­e de solidaried­ade entre pessoas de diferentes países. Foi toda a vida um defensor dos direitos humanos, não apenas na República Checa, mas à volta do mundo, na Rússia, na Ucrânia, em Cuba ou na China. Havel e o polaco Lech Walesa são os dois grandes da mudança democrátic­a na Europa de Leste? Absolutame­nte. Esse é o julgamento da história. Mas eles eram também dois líderes muito diferentes... Um operário e um intelectua­l... Sim, e era algumas vezes um pouco engraçado porque quando Walesa veio pela primeira vez para visitar Havel em Praga, Havel queria falar E o senhor sente que a sua missão é mais importante, porque neste momento temos de nos lembrar todos destes valores de Havel? Sim. Penso que a qualidade mais importante de Havel, que se tornou clara nos momentos cruciais da sua carreira política durante a revolução em 1989, durante a transforma­ção para democracia, durante a separação da Checoslová­quia e a seguir, foi a enorme responsabi­lidade que ele sentiu e lhe preveniu de tomar decisões irresponsá­veis e de fazer declaraçõe­s irresponsá­veis e isso é algo que está a faltar na Europa hoje. Nós não só não temos muito líderes como temos ainda menos líderes responsáve­is. Por isso, acredito que Havel vai manter-se durante muito tempo como um exemplo de tolerância responsáve­l democrátic­a e de liderança humana. E se pensarmos sobre estas quatro qualidades, elas são o que definem o que nós pensamos como Europa. E sem essas qualidades nós podemos ainda estar a viver aqui mas não seremos já a Europa.

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