Quando Soares ofereceu um carro a Václav Havel
LEONÍDIO PAULO FERREIRA
Mário Soares, já presidente da República, a oferecer a Václav Havel um carro para que não usasse as limusinas de fabrico soviético, e José Pedro Aguiar-Branco e Álvaro Beleza, ainda sem cabelos brancos, a manifestarem-se em Praga pela democracia em dezembro de 1989.
Está tudo isto e um pouco mais testemunhado em fotografias e filmes na exposição que por estes dias celebra em Lisboa, na Fundação Mário Soares, a amizade entre o histórico líder português e o falecido dissidente checoslovaco que aproveitou a boleia da queda do Muro de Berlim para derrubar o comunismo no seu país.
Antes da inauguração, conversei com Michael Zantovsky, autor da mais reputada biografia de Havel e sobretudo seu amigo e durante algum tempo porta-voz, até o dramaturgo, já presidente checoslovaco, o ter nomeado para embaixador nos Estados Unidos. Falou-me dos jovens portugueses que se juntaram em 1989 aos manifestantes pró-democracia e de como Soares foi o primeiro chefe de Estado europeu, indo mesmo a Praga, a apoiar a Revolução de Veludo que fez de Havel o presidente pós-comunista da Checoslováquia e depois de 1993 da República Checa.
Há muito em comum entre Soares e Havel, a começar logo pela passagem pela prisão, perseguidos um por uma ditadura fascista outro por uma comunista. E se o português também conheceu o exílio, o checo teve de resistir muito a deixar o país, pois o regime comunista pressionava-o a partir para se livrar de uma voz incómoda. Também partilhavam as origens burguesas e o perfil intelectual, algo que, por outro lado, distinguia muito o dramaturgo checo do polaco Lech Walesa, o metalúrgico que foi a outra grande figura da revolta da Europa de Leste contra o Kremlin.
Havel, que morreu faz em dezembro cinco anos, teve de assistir à desagregação da Checoslováquia, fenómeno que tentou contrariar, e acabou eleito presidente da República Checa. Deixou um legado ético e político tremendo que ainda hoje define o país, mas que também é apreciado na Eslováquia. Aliás, a relação próxima entre checos e eslovacos persiste passadas duas décadas, como são disso boas testemunhas em Lisboa os embaixadores Stanislav Kazecky e Josef Adamec (aliás, dois diplomatas falantes de português).
Homenagear o antigo líder checo faz todo o sentido. Até porque a Europa Central e de Leste, que hoje parece pela voz de alguns políticos questionar a pertença ao ideal europeu, mostrou no final da década de 1980 um entusiasmo pela liberdade e pela democracia que talvez só tenha comparação com o nosso 25 de Abril. E isso é mérito dos povos, mas também de gigantes morais como Havel.