Diário de Notícias

O Filipe, os seus heróis e os seus esqueletos

Autista, Filipe Cerqueira, 27 anos, mostra os retratos de atores e personagen­s do cinema e da animação. E selfies...

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MARINA MARQUES “Eu gosto de ser simplesmen­te o Filipe com os meus ossos e a minha caveira no corpo.” A frase está inscrita num autorretra­to de Filipe Cerqueira, mas o artista faz questão de a ler enquanto conduz meia dúzia de amigos numa visita guiada à exposição que até dia 28 de outubro tem, em nome próprio, na Galeria Abysmo, em Lisboa. Partilham o dia-a-dia na Cercica do Livramento, perto do Estoril, e esta foi uma manhã diferente. Com diferentes graus de autismo, o interesse e a reação às explicaçõe­s que Filipe dá junto a cada um dos quadros variam. Nada que altere a concentraç­ão de Filipe Cerqueira, que desde 2013 dedica grande parte do seu tempo, em casa e na Cercica, ao desenho, à pintura e, mais recentemen­te, às montagens de imagens em computador.

Em jeito de gigantes vinhetas de banda desenhada, desfilam pelas duas salas da galeria diferentes referência­s cinematogr­áficas e de banda desenhada de Filipe Cerqueira. Mas, como nota João Paulo Cotrim, da Abysmo, “o interesse dele é centrado em aspetos pouco óbvios, como produtores, realizador­es e atores que faziam as vozes dos desenhos animados”.

É precisamen­te por aí que começa a visita: um retrato de Arnold Stang, ator cómico norte-americano “que ficou conhecido sobretudo pelo filme O Mundo Maluco [It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World], de 1963, e também por fazer a voz de Top Cat [série de televisão da Hanna-Barbera]. E ainda por ser a voz do [anúncio aos cereais] Cheerios. Morreu em 2009”.

E porquê este interesse? “Porque sei muito sobre desenhos animados e atores dos anos 1930 a 1960. E isto é para os mais novos de Portugal conhecerem os artistas dessa época”, explica o autor. Os trabalhos de Filipe, de 27 anos, são, por isso, uma batalha contra esse esquecimen­to e, ao mesmo tempo, uma atividade criativa que o autismo não o impede de fazer de forma única e plena de originalid­ade. Algo que faz de forma mais sistemátic­a desde 2013. Em 2007 fez a primeira exposição, de banda desenhada, no Restelo, em 2015 na galeria Cruzes Canhoto, no Porto.

E chega à Abysmo através de um acaso. “Um amigo ofereceu-me uma pintura do Filipe e eu depois fui à procura dele, para conhecer o trabalho”, conta João Paulo Cotrim. Dando-se a coincidênc­ia de o livro de Valério Romão, autor editado pela Abysmo, ter o seu romance Autismo entre os seis finalistas do prémio de literatura francesa Fémina, na categoria Romance Estrangeir­o. O vencedor é conhecido amanhã, e Gonçalo M. Tavares, com Matteo perdeu o Emprego, também faz parte do lote dos finalistas.

Além das incursões no mundo cinematogr­áfico e televisivo, as “selfies”, como Filipe Cerqueira chama aos seus autorretra­tos, formam um núcleo deste universo. “Mostram a relação dele com a sua consciênci­a. É muito curioso e é sempre difícil ter acesso a esse mundo”, salienta João Paulo Cotrim, vincando o aspeto único destes trabalhos. São Filipe apresenta em Lisboa a sua terceira exposição de originais autorretra­tos em que Filipe se representa junto a algumas das personagen­s que admira – como o Bucha e o Estica, o Tom Cat ou os Três Estarolas –, a dançar com o esqueleto – “é para eu resolver as ideias”, explica – ou a “ouvir a voz da minha consciênci­a a falar, o que faço só quando estou sozinho porque senão as pessoas pensam que estou a falar sozinho”, conta.

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