Diário de Notícias

Não têm quase nada, mas sorriem sempre

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QNUNO PINTO FERNANDES uando chego à Selva a maioria dos migrantes ainda dorme. São 09.00. Alguns passaram parte da noite a tentar entrar num camião rumo ao Reino Unido.

Andar ali durante a manhã pode ser uma alegria. Quase todas as pessoas por quem passo me dão os bons dias, sempre com um sorriso no rosto, enquanto se preparam para fazer a higiene matinal.

Por estar aqui há nove dias já conheço alguns migrantes. Todos os dias vou tomar café à “casa” de uns sudaneses, uma casa feita de tábuas e plásticos, erguida pelos próprios, com a ajuda de alguns voluntário­s.

Depois de cumpriment­ar sete migrantes que dormem em três casas de madeira, perguntam-me logo “café ou chá?”. Bebo café com eles na “sala”, como chamam a um pequeno alpendre de madeira com dois sofás velhos .

Depois do café digo-lhes que vou dar uma volta, falar com algumas pessoas que já conheço, pois os dias aqui na Selva são sempre iguais e não existe nada de especial para fazer.

Chego a um lugar onde existe uma caravana que se chama Welcome Caravan, onde alguns voluntário­s estão a dar roupas ou tendas. Entretanto, chega a Luísa, uma voluntária portuguesa que já passou algum tempo na Selva. Diz-me que quer ir ver se encontra um amigo do Afeganistã­o que deixou aqui na Selva e pergunta-me se quero ir com ela ver se o encontra. Depois de andarmos às voltas durante alguns minutos batemos a uma porta.

Estavam a dormir mas assim que veem a Luísa por uma fresta da porta é uma alegria, dizem logo para entrar. Sou apresentad­o ao chefe da casa, um rapaz jovem do Afeganistã­o, que nos convida logo para almoçar com ele e os companheir­os de quarto. Chama um dos mais novos e pede-lhe que comece a fazer a comida, pois tem convidados, a Luísa e o Nuno.

Começo a falar com ele e pergunto porque está ali. Conta-me então a sua história: “Fugi porque o meu país estava em guerra e consegui depois de uma longa viagem chegar aonde queria, ao Reino Unido, onde consegui ter trabalho. Passado algum tempo já tinha a minha empresa e empregados a trabalhar para mim, estive dez anos no Reino Unido com uma vida construída e, subitament­e, fui apanhado pela polícia e deportado.” Com um sorriso no rosto, garante: “Vou tentar voltar ao Reino Unido, pois tenho lá tudo, amigos e família.” Pouco depois o almoço está pronto: um pão e uma espécie de feijoada à transmonta­na, mas sem carne e sem legumes, pois aqui a carne é muito cara. Falamos de muita coisa, do dia-a-dia deles, coisas que para nós podem parecer banais, mas que para eles não são, como ter um smartphone. Diz-me o afegão: “Para falar com a minha família no Afeganistã­o e para a ver tenho de ter um smartphone.” Pergunto-lhe o que vai fazer depois de a Selva acabar e ele, com o mesmo sorriso, repete: “Tentar ir para o Reino Unido.”

Chegada a hora de partir – estava com um pouco de pressa, pois tinha de ir ao centro de imprensa do governo francês levantar a acreditaçã­o –, o rapaz afegão não nos quer deixar ir. Pede que fiquemos mais um pouco, que comamos mais um pouco, pois a seguir vem o jantar.

Saio entretanto dali e chego ao centro de imprensa, onde vejo concentrad­a uma multidão de jornalista­s. Demoro duas horas a conseguir obter a minha acreditaçã­o para poder durante estes dias estar num perímetro de segurança restrito montado pela polícia.

Quando volto para a Selva, começam, mais uma vez, os confrontos entre as forças policiais e os migrantes. Duram mais de quatro horas. As casas de banho são incendiada­s como forma de protesto. A polícia lança granadas de gás lacrimogén­eo para afastar os migrantes. Estes respondem com o que têm à mão: pedras.

Reino Unido é o objetivo dos migrantes que vivem na Selva

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