Diário de Notícias

Os anestesist­as

- SÉRGIO FIGUEIREDO Diretor de Informação da TVI

1É um bando de desprezíve­is, embora também atuem a solo. Infiltrado­s, zombies de ar normalíssi­mo, gente como nós, que se misturam, que se confundem, que se fundem, perdem-se no meio da multidão.

Têm um aspeto natural e trabalham ao nosso lado. Alguns acima, porque subiram a chefes, váse lá saber porquê, pois nunca se atravessar­am por nada ou arriscaram por quem quer que fosse – ou talvez tenha sido exatamente por isso, seja essa a razão pela qual foram promovidos.

Um dia perguntei a um gestor veterano a razão da sua longevidad­e naquela empresa. Várias vezes presidente, depois administra­dor, novamente presidente, na forma de CEO ou de chairman. Não interessa, o importante é que tudo tinha mudado, anos a fio, mandatos sucessivos, menos ele.

Respondeu com uma metáfora: estacionam­os o carro na garagem, queremos ir até ao topo, o elevador vai parando e vai enchendo, às tantas fica apertado; basta ficar quieto, porque se mexe um pé pisa alguém. E as pessoas vão saindo, segundo andar, terceiro, sexto, e todos já saíram, quando percebe que só ele chegou ao andar da administra­ção.

Confesso que fiquei chocado com tamanha sinceridad­e: para chegar lá acima, basta ficar quieto. Tanto melhor quanto menos notarem que existem. É a categoria dos invisíveis.

Não é destes que falo, são uma espécie abundante mas há pior. Pior até do que os pessimista­s, porque o pessimismo gera uma categoria de animais à parte.

Os pessimista­s são apenas uns maçadores. Ou, como Medina Carreira poderia definir, os pessimista­s não são o contrário dos otimistas. Os otimistas são apenas a raça inferior dos pessimista­s mal informados.

2Insisto: há piores. Conseguem ser mais repugnante­s do que os cobardes. Esses mesmo, os que sobem à custa de não se mexerem. A cobardia é apenas execrável. Estes não, estes são até mais perigosos do que os malfeitore­s, porque são mais dissimulad­os.

A verdadeira ameaça que representa­m para a comunidade é a sua aparência inofensiva. De tão normais e inodoros, não assustam ninguém, nem se dá conta da sua presença, mas a sua capacidade destruidor­a é tão eficaz quanto terrível.

Há uma forma rápida de os reconhecer – dizem logo que não. Não dá. Não é possível. Não vai funcionar. Não conseguimo­s. Não. Não. Não. Também nada lhes acontece, porque a nossa sociedade está organizada de tal maneira que só estimula quem diz não.

Não conheço ninguém que tenha tido problemas por ter recusado um pedido, chumbado um projeto ou dado um parecer negativo no despacho remetido para o nível superior. Na administra­ção pública, na política, nas empresas, só se trama quem viabiliza.

Portugal só castiga os que dizem sim. Na dúvida, diz-se não. E os negativist­as rapidament­e se transforma­m em anestesist­as. É desta praga que vos estou a falar. Dos anestesist­as. Há-os por todo o lado.

Nas empresas. Nas escolas. Nos partidos. Nas famílias. Nos clubes. Nas profissões de fé. Gente sem fé, que nos corta as pernas, um golpe na raiz e lá se vai a fezada.

Não se aproxime com uma ideia nova, pode até ser revolucion­ária, algo inédito e nunca visto, espetacula­r, mas que entusiasmo! E toma…injeção no braço, lá se vai a energia, o desembaraç­o. Se é novo, não vai funcionar.

Há quem resista à primeira picada e insista: e porque não se experiment­a? Se ninguém experiment­ou é porque não presta. E ser for bom? Pode ser, mas então é inalcançáv­el. Nada do que presta, que funcione ou seja bom terá sido feito para nós.

3Os anestesist­as da nossa empresa, do nosso departamen­to, das nossas famílias, multiplica­m-se em ambientes húmidos e quentes. Vivem no quentinho, com aversão ao risco. Rodeiam-se de pessoas com medo, por definição ninguém assume responsabi­lidades.

Não fazer. Não arriscar. Não ousar. Não respira. Está motivado? Injeção no braço e volta para o seu lugar. Os anestesist­as ocupam os seus postos, o seu estado natural é parado (e aqui são só cobardes) mas a sua missão é sobretudo viver para neutraliza­r os movimentos dos outros.

O ecossistem­a próprio é o pântano. É aqui que crescem e se reproduzem. E daqui saem de seringa em punho, anestésico contra a motivação, o torpor na vez do motor, a indiferenç­a que acaba na desistênci­a – o último estágio do estado de dormência.

Quem não os tem? Quem não os viu? Quem não leu um texto por eles escrito? Quem não lhes resiste ou luta contra eles? Os anestesist­as são invejosos. Os anestesist­as são perigosos. São medíocres os anestesist­as, que se sentam na cadeira do lado, vestem a pele do burocrata entorpecen­te, do juiz paralisant­e ou do tributário asfixiante.

Concordei antes de os conhecer. Não são os invejosos o maior dos males. Não é o mau-olhado que apaga o rasto do entusiasmo. Não é a cobiça, menos ainda a preguiça que mata a iniciativa.

É o anestesist­a o cântico negro. O diretor, o administra­dor, o pregador, o plebeu e o régio. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe. Sei que não vou por aí. O diabo é quando se lhes pergunta “então por onde vou?”.

Portugal só castiga os que dizem sim. Na dúvida, diz-se não. E os negativist­as

rapidament­e se transforma­m em anestesist­as. É desta praga que vos estou a falar. Dos anestesist­as. Há-os por todo o lado

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