Os anestesistas
1É um bando de desprezíveis, embora também atuem a solo. Infiltrados, zombies de ar normalíssimo, gente como nós, que se misturam, que se confundem, que se fundem, perdem-se no meio da multidão.
Têm um aspeto natural e trabalham ao nosso lado. Alguns acima, porque subiram a chefes, váse lá saber porquê, pois nunca se atravessaram por nada ou arriscaram por quem quer que fosse – ou talvez tenha sido exatamente por isso, seja essa a razão pela qual foram promovidos.
Um dia perguntei a um gestor veterano a razão da sua longevidade naquela empresa. Várias vezes presidente, depois administrador, novamente presidente, na forma de CEO ou de chairman. Não interessa, o importante é que tudo tinha mudado, anos a fio, mandatos sucessivos, menos ele.
Respondeu com uma metáfora: estacionamos o carro na garagem, queremos ir até ao topo, o elevador vai parando e vai enchendo, às tantas fica apertado; basta ficar quieto, porque se mexe um pé pisa alguém. E as pessoas vão saindo, segundo andar, terceiro, sexto, e todos já saíram, quando percebe que só ele chegou ao andar da administração.
Confesso que fiquei chocado com tamanha sinceridade: para chegar lá acima, basta ficar quieto. Tanto melhor quanto menos notarem que existem. É a categoria dos invisíveis.
Não é destes que falo, são uma espécie abundante mas há pior. Pior até do que os pessimistas, porque o pessimismo gera uma categoria de animais à parte.
Os pessimistas são apenas uns maçadores. Ou, como Medina Carreira poderia definir, os pessimistas não são o contrário dos otimistas. Os otimistas são apenas a raça inferior dos pessimistas mal informados.
2Insisto: há piores. Conseguem ser mais repugnantes do que os cobardes. Esses mesmo, os que sobem à custa de não se mexerem. A cobardia é apenas execrável. Estes não, estes são até mais perigosos do que os malfeitores, porque são mais dissimulados.
A verdadeira ameaça que representam para a comunidade é a sua aparência inofensiva. De tão normais e inodoros, não assustam ninguém, nem se dá conta da sua presença, mas a sua capacidade destruidora é tão eficaz quanto terrível.
Há uma forma rápida de os reconhecer – dizem logo que não. Não dá. Não é possível. Não vai funcionar. Não conseguimos. Não. Não. Não. Também nada lhes acontece, porque a nossa sociedade está organizada de tal maneira que só estimula quem diz não.
Não conheço ninguém que tenha tido problemas por ter recusado um pedido, chumbado um projeto ou dado um parecer negativo no despacho remetido para o nível superior. Na administração pública, na política, nas empresas, só se trama quem viabiliza.
Portugal só castiga os que dizem sim. Na dúvida, diz-se não. E os negativistas rapidamente se transformam em anestesistas. É desta praga que vos estou a falar. Dos anestesistas. Há-os por todo o lado.
Nas empresas. Nas escolas. Nos partidos. Nas famílias. Nos clubes. Nas profissões de fé. Gente sem fé, que nos corta as pernas, um golpe na raiz e lá se vai a fezada.
Não se aproxime com uma ideia nova, pode até ser revolucionária, algo inédito e nunca visto, espetacular, mas que entusiasmo! E toma…injeção no braço, lá se vai a energia, o desembaraço. Se é novo, não vai funcionar.
Há quem resista à primeira picada e insista: e porque não se experimenta? Se ninguém experimentou é porque não presta. E ser for bom? Pode ser, mas então é inalcançável. Nada do que presta, que funcione ou seja bom terá sido feito para nós.
3Os anestesistas da nossa empresa, do nosso departamento, das nossas famílias, multiplicam-se em ambientes húmidos e quentes. Vivem no quentinho, com aversão ao risco. Rodeiam-se de pessoas com medo, por definição ninguém assume responsabilidades.
Não fazer. Não arriscar. Não ousar. Não respira. Está motivado? Injeção no braço e volta para o seu lugar. Os anestesistas ocupam os seus postos, o seu estado natural é parado (e aqui são só cobardes) mas a sua missão é sobretudo viver para neutralizar os movimentos dos outros.
O ecossistema próprio é o pântano. É aqui que crescem e se reproduzem. E daqui saem de seringa em punho, anestésico contra a motivação, o torpor na vez do motor, a indiferença que acaba na desistência – o último estágio do estado de dormência.
Quem não os tem? Quem não os viu? Quem não leu um texto por eles escrito? Quem não lhes resiste ou luta contra eles? Os anestesistas são invejosos. Os anestesistas são perigosos. São medíocres os anestesistas, que se sentam na cadeira do lado, vestem a pele do burocrata entorpecente, do juiz paralisante ou do tributário asfixiante.
Concordei antes de os conhecer. Não são os invejosos o maior dos males. Não é o mau-olhado que apaga o rasto do entusiasmo. Não é a cobiça, menos ainda a preguiça que mata a iniciativa.
É o anestesista o cântico negro. O diretor, o administrador, o pregador, o plebeu e o régio. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe. Sei que não vou por aí. O diabo é quando se lhes pergunta “então por onde vou?”.
Portugal só castiga os que dizem sim. Na dúvida, diz-se não. E os negativistas
rapidamente se transformam em anestesistas. É desta praga que vos estou a falar. Dos anestesistas. Há-os por todo o lado