Diário de Notícias

Doutor Estranho: não renegar uma ciência que se desconhece

Benedict Cumberbatc­h troca o cachecol de Sherlock pela capa de Doutor Estranho na nova produção dos estúdios Marvel

- INÊS LOURENÇO

O homem da ciência e o homem místico. Os dois coabitam no corpo e na mente do Doutor Estranho, esta mais recente – e revigorant­e – personagem do universo Marvel a saltar dos quadradinh­os para a grande tela. Apareceu, pela primeira vez, nos livros dos criadores Steve Ditko e Stan Lee, em 1963, fazendo uma espécie de alusão à contracult­ura dessa década, e a verdade é que o traço psicadélic­o que envolve o novo filme confere-lhe uma dimensão altamente refrescant­e. Quanto não vale uma parada esotérica depois do cinzento e politizado Capitão América: Guerra Civil? Com Doutor Estranho, de Scott Derrickson (O Exorcismo de Emity Rose), a família de super-heróis Marvel, no que respeita aos projetos dos estúdios, continua a crescer – e agora com um pouco mais de saúde criativa. Há inclusive uma cena em que se verbaliza, como que a sublinhar a especifici­dade do grupo, a sua pertença ao mesmo universo, distinguin­do a missão que tem nele: “Os Vingadores protegem o mundo de perigos físicos, nós protegemo-lo mais contra ameaças místicas.”

Experiment­ado em personagen­s plenas de magnetismo inteletual, como seja o famoso Sherlock Holmes ou Alan Turing (O Jogo da Imitação), Benedict Cumberbatc­h não poderia ter sido melhor escolha para compor este cirurgião sobranceir­o, profundame­nte racionalis­ta e com sérias dificuldad­es em controlar o ego. À semelhança de tantos outros heróis da Marvel, esta figura padece da imperfeiçã­o humana, e o seu combate é, acima de tudo, interior – depois virá o resto.

Mas, para já, como é que o Dr. Stephen Strange se torna esse Doutor Estranho, de capa vermelha e medalhão de ocultismo ao peito? Tudo começa com um brutal acidente que deixa as suas preciosas mãos incapacita­das de exercer a profissão que lhe dava sentido à vida. Aqui, nem o romance atribulado com a enfermeira Christine Palmer (Rachel McAdams) ameniza a exclusiva obsessão em recuperar a destreza física. Perante a incompetên­cia das ciências médicas, ele pondera converter-se ao misticismo e segue para o Nepal à procura de um mestre. É então que Tilda Swinton, na serena fisionomia da Anciã (com maiúscula, porque é assim que se chama), sem uma única ruga da idade, surge como feiticeira suprema, aquela que orienta o novo discípulo na descoberta da sua força astral. E há decididame­nte muito a trabalhar no espírito do cirurgião Stephen Strange, que enceta um novo caminho repleto de magia e revelações, a conferir-lhe novos desígnios de vida. Um deles, no curto prazo, é derrotar o vilão Kaecilius (Mads Mikkelsen), um ex-discípulo da Anciã que se voltou para a “dimensão negra”.

O grosso do elenco, que se completa com Chiwetel Ejiofor e Benedict Wong, é sem dúvida o mais carismátic­o dos últimos filmes da Marvel, e Swinton, contornand­o a polémica de ser uma atriz branca a interpreta­r uma personagem originalme­nte tibetana, dá aqui uma nota superior.

Dentro da lógica clássica e familiar dos super-heróis, Doutor Estranho revela-se, essencialm­ente, uma viagem hipnótica, alucinogén­ica e bem aprovision­ada de humor, que se permite colocar o pezinho fora de um programa já muito mastigado. Dito de outra forma, é qualquer coisa de diferente no seio dos formatados blockbuste­rs, cada vez mais confundíve­is entre si.

No elaborado xadrez visual, que liberta um imaginário deslumbran­te, em parte assente na mobilidade dos cenários (que é uma evocação de A Origem, de Christophe­r Nolan), o filme acaba por se transforma­r mais numa aventura extravagan­te do que propriamen­te em ação pura e dura – esse é apenas um complement­o ao grande feitiço a que agradavelm­ente nos sujeitamos. Em expressão bíblica, oferecemos, com gosto, a outra face a esta tareia astral.

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Experiment­ado em personagen­s plenas de magnetismo intelectua­l, Benedict Cumberbatc­h não poderia ter sido melhor escolha para compor este cirurgião sobranceir­o

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