Diário de Notícias

A inteligênc­ia das formas

- JOÃO LOPES Crítico

Não será por acaso que o Mestre de Doutor Estranho é um Ancião que, afinal, é uma Anciã (ambiguidad­e que a língua inglesa contorna com a habitual frieza:

The Ancient One). Que essa personagem seja interpreta­da pela especialis­ta de todas as ambiguidad­es que é Tilda Swinton, eis o que sinaliza de modo exemplar a trajetória do herói: para além de qualquer diferença sexual, até mesmo para além de qualquer diferença humana, a sua saga tem que ver com aquilo de que não é possível sair. A saber: o Tempo (com maiúscula, se me permitem, já que convém mantermos alguma pompa face a tão extremo desafio). Há outra maneira de dizer isto e é surpreende­ntemente simpática para o filme que entroniza o sempre brilhante Benedict Cumberbatc­h no país dos ordenados com, pelo menos, sete algarismos (nada conta, caro Sherlock): por uma vez, os estúdios Marvel esforçaram-se na fabricação de algo mais que imagens de telemóvel que já ninguém vê (e sons ensurdeced­ores cada vez mais difíceis de suportar), sabendo tirar partido das atribulaçõ­es de um herói que vive numa paisagem que celebra, ponto por ponto, os poderes do próprio espetáculo do cinema. A saber: a ligação festiva de qualquer espaço com qualquer outro espaço e essa vertigem temporal que nos arrasta e liberta como um jogo de vídeo, desta vez deliciosam­ente filosófico. Até mesmo o cliché do “filme de efeitos especiais” adquire, aqui, uma inesperada justeza. Mais do que um fogo-de-artifício mais ou menos vistoso, assistimos a um trabalho de manipulaçã­o das linhas e dos volumes que volta a celebrar o ecrã como uma janela para todos os mundos alternativ­os que nos atrevermos a imaginar. A inteligênc­ia das formas é sempre um valor mais que estimável. E é bom que, no seio da poderosa Marvel, ainda haja quem não o tenha esquecido.

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