O grande teatro do mundo e da guerra é um monstro em palco
Os Últimos Dias da Humanidade, a colossal peça de Karl Kraus, é encenada na íntegra em Portugal pela primeira vez. Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso dirigem a maratona
“Quem tiver alguma coisa a dizer, avance e fique em silêncio”, disse Karl Kraus (1874-1936) em 1914, meses depois do início da Primeira Guerra Mundial. Este é o nosso homem. Aliás, o de Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso, que estreiam amanhã no Teatro Nacional São João (TNSJ) uma peça colossal a que Kraus chamou Os Últimos Dias da Humanidade e que nunca foi apresentada em Portugal na íntegra. O texto original, que tem 209 cenas, foi reduzido a cerca de metade para este espetáculo. Ainda assim, são quase duzentas as personagens em palco, representadas por um universo de 21 atores nesta peça nunca antes representada em Portugal nesta dimensão, e que foi dividida em três partes – Esta Grande Época, Guerra É Guerra e A Última Noite –, e cada uma dura cerca de duas horas.
Os encenadores, Carinhas e Cardoso, chamam à peça um “monstro” e uma “máquina”, e haveriam de explicar porquê. Kraus, por sua vez, afirmava no prefácio da obra escrita entre 1915 e 1922: “Este drama, cuja extensão, medida à escala terrena, daria para preencher uns dez serões, destina-se a ser representado por um teatro do planeta Marte.” Mas nós não estamos em Marte. Estamos num teatro cujos 500 lugares foram reduzidos para 240, pois o palco ocupa agora a plateia, feita estaleiro, e só de cima assistimos à “máquina” no palco.
O escritor austríaco alegava que o “nosso mundo não teria forças” para suportar a peça que escrevera. Porquê? “Pois que é sangue do seu sangue.” Ao encenar a peça, Nuno Carinhas, o diretor artístico do teatro – que aqui também assina a cenografia e os figurinos –, e Nuno M. Cardoso acrescentam que hoje aquele ainda é “o seu sangue”. Vozes, discursos, recortes “Isto não está localizado na História, infelizmente tem ecos muito presentes. Aliás, é por isso que isto nos interessa”, afirma Carinhas. Mesmo que, como contava Cardoso, grande parte do texto seja “documental, figuras tiradas do real, vozes, discursos, grande parte deles são retirados da imprensa” durante a guerra. “Kraus era sobretudo um grande ouvidor e um grande leitor, e foi a partir daí que ele construiu este monstro”, continua Carinhas. “Realmente isto é um monstro, porque ele não podia ter plano, a guerra não tinha plano quando começou, ele não sabia como se ia desenvolver nem como ia acabar.” Um “Carnaval trágico” Há muitas vozes na voragem com que as personagens atravessam o palco. Ora estamos numa praça de Viena ora nas trincheiras. Ora passa um grupo de raparigas que trocam risinhos à passagem de homens em uniformes ora “o louco” cuja lucidez um grupo de médicos se ocupa em contrapor, afirmando que o racionamento não afetou em nada a saúde da população durante a guerra, e que a mortalidade infantil é uma fantasia. Ora passa, e fica o Eterno Descontente, interpretado por António Durães, a personagem com mais densidade em toda a peça, e a que mais se assemelha ao próprio Karl Kraus.
“Se alguém não aparecer aqui, a máquina para. E isso dá aos atores também uma outra forma de encarar este objeto. O ator nunca pode criticar a sua personagem. Tem de assumir sempre aquilo que diz, de forma imediata e sem grandes constrangimentos, porque passado um minuto pode estar a fazer uma personagem com uma ética completamente diversa, e portanto está ao serviço dessa diversidade”, explica Nuno Carinhas. Fala como quem se referisse a uma espécie de mapa-múndi da existência humana em tempos de guerra, polifónica, e assumindo como tom principal essa polifonia.
Cardoso conta que, em termos de narrativa – escassa nesta peça –, o que há é uma “evolução da festa inicial até ao Carnaval Trágico final em que já são quase mascarados”. “Fantasmas”, completa Carinhas. Quando perguntamos se o mundo de hoje está na festa ou no carnaval, o encenador responde: “Acho que está tudo misturado. Porque sobretudo agora, depois da grande abertura tecnológica, digital, ao mundo inteiro, nós percebemos que se estivermos em Mossul estamos de uma determinada maneira, se estivermos nos Estados Unidos a assistir à campanha eleitoral estamos noutra. Isso se calhar vai exigir-nos no futuro uma ainda maior opção ética, porque somos mais conscientes.”
Antes, Carinhas lembrara aos jornalistas no ensaio para a imprensa: “[Hoje] estamos a ver a guerra em direto. Os tanques a posicionarem-se e as pessoas a fugirem. Em Mossul, é a loucura total e absoluta, à mesma com os soldados eufóricos, como vemos nalguns documentários sobre a Primeira Guerra, em que os homens partiam eufóricos dentro dos vagões, porque iam ali e já vinham. Só que não vieram, grande parte deles.”
Kraus chegou a fazer uma versão curta da sua peça que se destinava ao palco. Não foi essa que os encenadores usaram, mas outra trabalhada com João Luís Pereira e Pedro Sobrado. A tradução integral do texto de Kraus para a língua portuguesa foi feita por António Sousa Ribeiro (é dele a tradução de todas as passagens do escritor austríaco aqui citadas), e dela resultará uma edição apresentada a 12 de novembro.
Quanto ao resto, difícil é escapar aos ecos do nosso tempo em Os Últimos Dias da Humanidade. Até mesmo nisto: “Este espetáculo é muito austero. Não dá ainda para nos esquecermos de que vivemos em austeridade. E, quando um dia o Nuno [M. Cardoso] me disse ‘vamos prolongar o palco pela plateia’, eu disse ‘OK, mas a partir daí não vamos fazer mais nada’. O orçamento fica esgotado. São opções radicais.” E por falar em algo radical, no dia 19 as cerca de seis horas da peça sobem ao palco do TNSJ. Pelo meio, há dois intervalos.