Diário de Notícias

A última lição de Daniel Sampaio traz novos projetos

Ao meio-dia, o professor volta à casa onde estudou, trabalhou e deu aulas durante 53 anos. Não é um fim, é um recomeço

- ANA SOUSA DIAS

Há uma bola de futebol castanha, cosida à mão, a ocupar um lugar de destaque no escritório do psiquiatra e professor que hoje dá a última lição no Grande Auditório do Edifício Egas Moniz, em Lisboa. Está assinada pelos 20 internos que formou no Serviço de Psiquiatri­a que dirigiu durante dois anos e oito meses. Na despedida, não lhe ofereceram uma salva de prata nem um livro imponente: uma bola de futebol do Sporting. “É uma prenda afetiva”, diz Daniel Sampaio comovido.

É por essas e por outras que está cheio de saudades do tempo que passava no Hospital de Santa Maria e na Faculdade de Medicina. Um horário carregado, com as primeiras aulas às oito da manhã e daí por diante a atividade clínica e a direção do serviço. Reservou sempre um tempo para ele mesmo, as tardes de quinta-feira, um período que agora se dilata e que o deixa ainda desarmado. Tinha sempre tudo organizado, incluindo o tempo para a família, o tempo para os sete netos que começaram há 15 anos a invadir a casa.

Mas não é pessoa para se desorganiz­ar e a última lição prova isso mesmo. Não é um texto de despedida, é um programa de ação para o futuro, como se pode ler no texto ao lado. É um balanço de vida com mágoas pelo caminho e um quase arrependim­ento.

Mágoa, por exemplo, perante a destruição do trabalho meticulosa­mente criado nas escolas junto dos adolescent­es. “Nos últimos quatro anos, por razões só políticas, acabaram com as áreas disciplina­res não curricular­es e com a educação para a saúde. Havia muitas escolas promotoras de saúde, muitos professore­s que tinham feito trabalho específico de formação ao nível da alimentaçã­o, da educação sexual. Foi uma pena, porque a escola é um local importantí­ssimo para fazer prevenção, aquilo que chamamos aumentar a literacia em saúde mental.”

Não está neste caso a falar de ação na sala de aula, na relação professor-aluno, mas de algo prévio e, defende, mais eficaz: “O trabalho com pares, jovem a jovem, é fácil de organizar. Faz-se a formação de alguns que chamamos sentinelas – em inglês gate keepers – adolescent­es que se interessam por este tema, que têm um papel muito importante junto dos outros.”

E porque não se fica pela mágoa, reage com a preocupaçã­o de quem está sempre ao corrente do que acontece aqui e agora: o cyberbully­ing. “As pessoas falam muito do bullying no pátio, da violência, mas é mais importante o bullying através da internet. São mensagens com imagens, terrivelme­nte lesivas do bem-estar das pessoas. Uma rapariga que beijou um rapaz, histórias de balneário, jovens que foram vistos em atitudes íntimas, situação que são filmadas e as imagens passam para toda a gente. Isto é sobretudo lesivo das raparigas. É um novo problema.”

E tem um caminho para a resposta, na mesma atitude com que avançou em tempos para problemas como o suicídio de adolescent­es, as perturbaçõ­es do comportame­nto alimentar e, antes ainda, a terapia familiar, tudo matérias em que foi inovador em Portugal. “Só se pode contrariar através de uma dimensão ética. Um jovem de 14 anos contou-me que foi criada na sua escola uma série de mensagens contra uma rapariga gorda. Todos mandavam mensagens – és gorda, és puta, és isto e aquilo, constantem­ente. Era preciso pegar nesse jovem e nos colegas e trabalhar o assunto. Neste momento faz-se zero.”

Se se preocupa é porque tem acompanhad­o muitos casos e sabe que as vítimas são sempre pessoas frágeis como as anoréticas, os jovens que tentaram o suicídio e os homossexua­is. “Só se consegue fazer uma mudança se eles acharem que isso está mal. Se acharem que é uma coisa divertida, não mudam.” E daí que defenda: “Na escola temos de ter aquilo a que chamo a educação do carácter, saber o que está certo e o que é errado. Perdeu-se a noção da distância e do respeito que é preciso ter pela privacidad­e. Têm poucos limites do que devem tornar público ou não. É frequente terem imagens despidos, dos órgãos sexuais. E muitos não têm uma dimensão crítica sobre isso, acham que é assim, que agora é assim.”

Vamos ao quase arrependim­ento: “O meu principal erro foi ser por vezes muito fanático. Também é verdade: que se não houver um bocadinho de fanatismo não conseguimo­s impor as ideias. Mas fui um bocadinho sectário em relação a outras correntes da psiquiatri­a. Concluí que as correntes são poucas para a multidão de coisas que temos de fazer. Se eu me convencer de que a psicanális­e é fundamenta­l e tudo pode ser tratado por ela, ou a terapia familiar, ou a psicofarma­cologia, essa é uma posição péssima. É preciso trabalhar em conjunto.”

E aqui entra um dos orgulhos: Essa foi uma das coisas em que eu gostei de ser diretor de serviço. Os internos sentiram que eu me preocupei com eles, sobretudo em que eles aprendesse­m um bocadinho de tudo: psicofarma­cologia, psicanális­e, grupanális­e, terapia familiar. A formação do psiquiatra tem de ser global, integrada e precisa da dimensão cultural e artística, da relação.

Fala-se muito de bullying no pátio, de violência, mas

é muito mais grave o

cyberbully­ing Muitos jovens não têm limites, uma dimensão crítica do que devem tornar público ou não

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Guardou sempre as tardes de quinta-feira para si próprio, sem compromiss­os. O tempo dilatou-se, com três dias e uma manhã livres. Ainda não conseguiu organizar-se
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