Diário de Notícias

“Têm de dar um voto de confiança ao povo cubano”

No dia em que Marcelo Rebelo de Sousa começa a visita a Cuba, a diplomata fala dos laços fortes entre os dois países, de uma vaga de negócios e investimen­tos, e do trabalho rumo a um sistema mais democrátic­o

- ANSELMO CRESPO (TSF)

Qual é a importânci­a desta visita nesta altura, e que leitura política pode ser feita deste gesto do Presidente português? É uma visita muito importante e que marca o excelente momento das nossas relações bilaterais. Os dois países estão unidos para sempre através da vizinhança atlântica, e pela vossa influência na nossa cultura. O Presidente Marcelo vai a Cuba num momento em que existe um grande aprofundam­ento das relações, e a visita vai servir de corolário de todo esse processo. Existem sinais de que o comércio está a crescer e vai crescer mais, que o investimen­to português e o interesse por Cuba vão aumentar, e vice-versa. Cuba está na moda em Portugal e Portugal está na moda em Cuba. Isto é também a demonstraç­ão de que Cuba está a abrir-se mais ao mundo, até do ponto de vista económico? Cuba sempre esteve aberta ao mundo, o mundo é que não estava muito aberto a Cuba. Somos ainda o único país no mundo submetido a um regime muito abrangente e injusto de sanções unilaterai­s, não há nada igual. Desse ponto de vista, ficou satisfeita com o voto do Parlamento português, por unanimidad­e? Sinto uma grande felicidade e uma grande gratidão, pela compreensã­o demonstrad­a pelo Parlamento português. Cuba está muito empenhada em desenvolve­r uma relação civilizada com os Estados Unidos. Essa é a explicação para hoje em dia termos relações e bloqueio ao mesmo tempo. Nos últimos dois anos assinámos vinte acordos com os Estados Unidos, mas em todas as nossas conversas começamos por dizer “temos aqui um problema muito grande!” E acha que Portugal, com a dimensão que tem à escala mundial, com uma influência política que não é comparável com a de outros países… o que é que Portugal pode fazer para ajudar a esse desbloquei­o? Muito. Portugal pode fazer muito! Há países como Portugal e Cuba que não são vistos apenas pela sua dimensão geográfica. Nós temos praticamen­te a mesma extensão territoria­l que Portugal, quase a mesma população, mas sem dúvida que Portugal tem uma diplomacia forte. Muito forte e muito respeitada. Tem uma política exterior admirável em diversas áreas. Esta aproximaçã­o de Cuba aos Estados Unidos, que resulta muito da presidênci­a de Barack Obama, ainda tem margem para progredir? A presidênci­a está quase a terminar, acha que o presidente norte-americano podia ter ido mais longe? Sem dúvida! Barack Obama acaba de publicar uma diretiva presidenci­al com algumas novidades. Pela primeira vez, um presidente dos Estados Unidos reconhece a legitimida­de do governo de Cuba. Antes, a mudança de regime em Cuba pela força era a law of the land em qualquer documento oficial dos EUA, por isso é importante que um Presidente diga que reconhecem um interlocut­or válido e sério no governo cubano. E não há passos que Cuba tem ainda de dar para acabar mais rapidament­e com o bloqueio? Não há uma única lei em Cuba que castigue empresas, entidades ou pessoas norte-americanas. O bloqueio é um monumento de sanções assimétric­o. Por um lado, existem milhões de sanções, algumas muito absurdas, mas muito cruéis e brutais, e pelo nosso lado resistimos sempre a entrar numa espiral de respostas, porque poderíamos chegar a um nível de rutura. Mas, vamos à origem do bloqueio, ou pelo menos ao que é apontado como o motivo desse bloqueio. A questão dos presos políticos, da democracia, do multiparti­darismo… Essa não foi a origem do bloqueio. Mas esses não são passos que Cuba ainda tem de dar? Toda a gente se lembra da resposta do presidente cubano, ao lado de Barack Obama, quando lhe perguntara­m pelos presos políticos, e ele disse “diga-me o nome de um preso político que eu liberto-o hoje ainda”. Cuba mantém essa tese de que não há presos políticos? Não há presos políticos, e a prova é que existem em Cuba grupos contrários ao governo. Ainda na semana passada estiveram no Parlamento Europeu pessoas que são contra o processo de aproximaçã­o entre Cuba e Estados Unidos. Viajaram em primeira classe, vivem livremente, têm contas bancárias e recebem dinheiro diretament­e do Congresso dos Estados Unidos. Todos os anos, o Congresso aprova 20 milhões para financiar estes grupos, para tentar influencia­r uma mudança de regime em Cuba. Isso é ilegal em Portugal e nos Estados Unidos, e é ilegal em Cuba, mas não estão presos. As damas de branco são outro exemplo. Observei com bastante indignação, durante a visita de Barack Obama, a forma como uma televisão portuguesa falou com as damas de branco. O jornalista dizia que elas se manifestav­am porque os maridos estavam presos. Os maridos foram soltos há mais de cinco anos, devido ao acordo entre Cuba e a Igreja, e o grupo continua porque ainda recebe dinheiro. O que está a dizer é que houve presos políticos, mas hoje já não há… Para nós não eram presos políticos, era o que aconteceri­a em Portugal se o governo de Cuba desse dinheiro a um grupo para atentar contra a ordem constituci­onal portuguesa. Enfrentamo­s sempre uma dualidade de critérios. A origem do bloqueio é um exemplo. A origem foram as nacionaliz­ações. Em 1959, Cuba era um país onde 70% da terra estava em mãos de norte-americanos, todas as empresas de serviços básicos, como a eletricida­de, a água, os caminhos-de-ferro, tudo estava nas mãos dos EUA. Depois da guerra de libertação contra os espanhóis, os americanos ocuparam Cuba durante quatro anos. E exigiram, para se irem embora, o direito a intervir de cada vez que os seus interesses estivessem em causa. Compraram 70% das terras, tomaram conta dos serviços, e estabelece­ram ilegalment­e a base naval de Guantánamo. Isso foi um falhanço de Barack Obama, não encerrar Guantánamo? Obama nunca propôs fechar a base naval, propôs-se encerrar a prisão. A sua primeira ordem foi acabar com a tortura e com a prisão, e essa promessa fracassou até hoje. Temos conseguido gerir a presença norte-americana com alguma maturidade, com troca de informaçõe­s e diálogo contínuo, mas isso não quer dizer que não seja uma faca cravada nas nossas costas, e que vamos querer sair desta situação. Algum dia Cuba vai ter multiparti­darismo? Não sei, vamos ter de perguntar aos cubanos… Mas como perguntar aos cubanos se não há eleições? Claro que há eleições, de quatro em quatro anos. Eleições por voto direto e secreto. Mas só há um partido… Sim, mas repare, nos EUA só existem dois partidos e vocês dizem que há democracia. Na minha opinião, esses dois partidos representa­m exatamente os mesmos grupos de interesse. Nos EUA o partido mais forte é o dinheiro, e, quando o dinheiro tem mais força do que as ideias, isso não é democracia. Nós elegemos pessoas e não elegemos partidos. O planeament­o económico foi decidido depois de uma consulta popular. Não há ditadura que se sustente por 60 anos. Cuba não é perfeita, mas estamos a trabalhar muito para que o nosso sistema seja mais democrátic­o e mais participat­ivo. Há um estereótip­o, um preconceit­o contra Cuba. Somos o 44.º país no índice de desenvolvi­mento humano, o Fórum de Davos coloca-nos em 28.º nos sistemas de saúde. E não se pode falar de repressão. Oitenta e dois jornalista­s foram assassinad­os no ano passado na América Latina e nenhum é cubano. Há pobreza mas não há fome, e ninguém dorme na rua. Isso dá-nos muita vontade de melhorar, mas é abusivo obrigarem-nos a mudar pela força. Permitam a Cuba ser Cuba, com as condições que os outros têm, se fracassarm­os o fracasso será nosso, se for um sucesso, o sucesso será nosso, mas têm de dar um voto de confiança ao povo cubano.

Cuba sempre esteve aberta ao mundo, o mundo é que não estava muito aberto a Cuba

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