Diário de Notícias

Ciclo Tennessee Williams termina com depressão de A Noite da Iguana

O encenador Jorge Silva Melo fecha o ciclo dedicado a Tennessee Williams com a peça de 1961, com Nuno Lopes, Maria João Luís e Joana Bárcia. Estreia-se amanhã no Teatro São Luiz, em Lisboa, e fica em cena até 5 de fevereiro

- MARIA JOÃO CAETANO

“Como é que posso estar preocupado com a felicidade num mundo em que o Trump ganhou e a Le Pen está quase a ganhar?”

Foi ali mesmo, no Teatro São Luiz, em Lisboa, que, no final de 1964, Jorge Silva Melo viu o filme A Noite da Iguana, realizado por John Houston, com os atores Richard Burton, Ava Gardner e Deborah Kerr. Do filme, o encenador recorda a sempre presente “pulsão sexual” do protagonis­ta, Shannon, um reverendo afastado da igreja por estupro (gostava de raparigas menores) e heresia. “Todos temos um pecado sexual escondido, essa era a revelação mais importante do filme”, recorda. Mas, quando começou a trabalhar o texto de Tennessee Williams, foi descobrind­o que havia mais, muito mais, nesta peça escrita em 1961: “É a última que Tennessee Williams considerou uma grande peça. E foi o último grande êxito que ele teve na Broadway.”

Esta é também a última peça do ciclo que os Artistas Unidos dedicam ao autor norte-americano, que começou em 2014 com Gata em Telhado de Zinco Quente e passou depois por Doce Pássaro da Juventude (2015) e Jardim Zoológico de Vidro (2016). Uma oportunida­de única para conhecer melhor o percurso deste autor, admite Silva Melo: “É muito engraçado ver como ele vai abandonand­o a intriga na escrita das peças, desde 1947, que é o Jardim Zoológico, até 1962, que é esta, e que considera mais como um poema dramático. Aqui ele cruza personagen­s e prescinde das reviravolt­as das intrigas.”

No palco do São Luiz está instalada a pensão Costa Verde, no México. Uma casa de madeira, uma ampla varanda, uma cadeira de baloiço e uma rede. Palmeiras, um calor imenso, referência ao rio ali perto e a uma paisagem que, dizem, deslumbra qualquer artista. Dois empregados descalços e de chapéu de palha, encostados às paredes, a dormitar. Uma mulher de camisa entreabert­a e o chocalhar das pulseiras no braço, abana-se com um leque, transpira sensualida­de. É a dona da pensão (é a atriz Maria João Luís). Ali recebe o seu velho amigo, Shannon (Nuno Lopes, na sua estreia com os Artistas Unidos), o tal reverendo, afastado da igreja que, para sobreviver, tenta manter-se afastado do álcool e conduz grupos de turistas católicos numa camioneta em viagem pelo exotismo mexicano. Ali chegam também uma jovem pintora Hannah e o seu avô poeta ( Joana Bárcia e Américo Silva), artistas ambulantes, com pouco dinheiro mas muita utopia. Shannon está outra vez em apuros por causa da sua conduta. As duas mulheres oferecem-lhe a salvação, cada uma à sua maneira.

A ação passa-se em 1940, há uma guerra do outro lado do oceano, há um grupo de turistas ale- mães a celebrar a queda de Paris, e há notícias nos jornais com a grande miséria da Índia. Isto mesmo viveu Tennessee Williams por essa altura quando esteve instalado num sítio assim a tentar curar uma depressão. “Foi a primeira depressão dele, em que quase foi para um manicómio”, explica Silva Melo. “A perda da fé, uma história de amor com um homem que correu muito mal, ele chega a esta pensão com delirium tremens. Tal como Shannon. Shannon repete em grandioso, em wagneriano, os temas da depressão de Tennessee Williams.”

Num momento em que se vive o nazismo (e a peça é escrita mais tarde, quando já se conhecem os pormenores do Holocausto), que espaço há para a questionaç­ão individual? A pergunta faz sentido ainda hoje, afirma o encenador: “Como é que eu posso estar preocupado com a felicidade (ou o que é a verdade, a mentira, o encontro de si próprio, a tranquilid­ade) num mundo em que o Trump ganhou e a Le Pen está quase a ganhar? É a pergunta que Shannon está a fazer. Esta busca individual em momentos históricos tremendos – é essa a questão que esta peça levanta.”

Não se deixem distrair pelos barulhento­s turistas alemães, a rapariga de calções curtos que se diz apaixonada por Shannon, a professora histérica que defende a honra da rapariga, os senhores da empresa de turismo que vêm despedir o guia e os rapazes mexicanos que capturam uma iguana e a prendem debaixo do alpendre. Aquilo que verdadeira­mente importa acontece na cabeça de Shannon e nos diálogos que estabelece com as duas mulheres e é um questionam­ento sobre o que é a verdadeira liberdade: “Vamos fazer de conta que somos deuses, como as crianças a brincar às casinhas.” Uma tempestade tropical abate-se sobre aquela pensão no México e, na manhã seguinte, talvez já não estejamos todos aqui.

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Os atores Maria João Luís e Nuno Lopes: ele interpreta Shannon, um ex-reverendo, alcoólico e que gosta de raparigas menores

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