O cidadão e o Estado (ou como nem Kafka se lembrava de coisa assim)
Ahistória foi amplamente divulgada na comunicação social. Uma cidadã concluiu, no ano letivo 2012-2013, o ensino secundário. Candidatou-se então ao ensino superior. Satisfeitos todos os requisitos formais e materiais, incluindo a entrega do documento posto em causa mais tarde, foi aceite a concurso e colocada em Bioquímica para o ano letivo 2013-2014. Decidiu, porém, reinscrever-se no ensino secundário para melhoria de nota. Apresentou-se, pois, a novo concurso para o ano letivo 2014-2015. A 18 de julho de 2014, compareceu no Gabinete de Acesso ao Ensino Superior da Universidade do Porto (GAES-UP) para entregar os documentos. Os documentos foram entregues ao funcionário. O funcionário fez uma fotocópia de cada documento, apostou carimbo e assinou a conformidade com os originais. De seguida, devolveu estes à dita cidadã. Foi também emitido um outro documento, assinado pelo funcionário e pela cidadã, atestando que, na generalidade, os documentos foram submetidos. A 7 de setembro de 2014, a Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) informa a candidata que foi excluída da candidatura por não ter apresentado todos os documentos das provas de acesso. No dia seguinte, a candidata apresentou reclamação relativa à exclusão da sua candidatura. Em anexo à reclamação, a candidata entregou documento comprovativo da dita prova (documento já em posse da DGES desde julho de 2013). Por despacho de 24 de setembro, o subdiretor-geral do Ensino Superior indefere a reclamação por a candidata não ter provado que o dito documento tinha sido fotocopiado a 18 de julho de 2014. A cidadã entrou, pois, na fase de contencioso judicial. O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa decidiu a favor da candidata, forçando a dita DGES a criar uma vaga especial no curso de Medicina. O Estado recorreu. O Tribunal Central Administrativo do Sul revogou a sentença da primeira instância. A 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, no seu Acórdão 1079/16, de 14 de dezembro de 2016, deu razão à segunda instância. Apesar de dar por provado que a dita DGES tem, pelo menos, duas cópias do dito documento (julho de 2013 e setembro de 2014), entendem os ilustres magistrados que a candidata não conseguiu provar que o funcionário fez uma cópia no dia 18 de julho de 2014. Assim sendo, a cidadã não foi admitida no ensino superior. Estando já no terceiro ano letivo do curso.
Não vou entrar em considerações sobre um absurdo formalismo processualista que deixe o cidadão desprotegido frente a um Estado kafkiano. Nem vale a pena discutir a ausência de tutela efetiva de um direito que assistia a esta cidadã (uma vez que preenchia os requisitos materiais para entrar em Medicina). Deixemos, inclusivamente, de lado qualquer discussão sobre os aplicadores considerarem proporcionais as consequências decorrentes da sua decisão. Afinal só há uma vítima nesta história e ela decorre de uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo. Tomemos o Acórdão 1079/16 como bom e vejamos o que ele nos diz, a nós cidadãos, sobre a nossa relação com o Estado.
Primeiro, não há qualquer princípio de veracidade. O cidadão não é honesto. Compete, pois, a este demonstrar que o é. Mais, o Estado entende que semelhante princípio não pode existir, diz mesmo que é impraticável, porque oneraria excessivamente a Administração com a prova de todas as deficiências causais da ausência de documentos. Por outras palavras, onerar dez milhões de cidadãos com essa prova parece ao Estado menos grave e menos custoso do que obrigar a Administração a ser mais cuidadosa.
Segundo, num conflito entre um simples cidadão e o todo-poderoso Estado, o ónus da prova recai sobre o cidadão (porque evidentemente o cidadão é necessariamente o requerente). Em Portugal, compete ao cidadão provar que entregou o documento e não ao Estado demonstrar que ele não foi entregue (mesmo que o Estado admita que já tem várias cópias entregues em ocasiões anteriores e posteriores). Da próxima vez, não se esqueça de pedir ao funcionário para conferir, carimbar e assinar as fotocópias à sua frente, uma por uma. E não aceite a recusa do dito funcionário.
Terceiro, o cidadão tem a obrigação de saber que um documento oficial, assinado por um funcionário, carimbado, afinal não tem valor legal absolutamente nenhum. Tudo porque não é um documento autêntico para efeitos probatórios. E o funcionário nem sempre é uma autoridade pública cujo ato seja dotado de fé pública. Quando visitar uma repartição do Estado não hesite em impressionar o funcionário solicitando um documento autêntico para efeitos probatórios (escolha bem as palavras). Não aceite um atestado genérico porque não vale. E pergunte ao funcionário se ele é uma autoridade cujos atos são dotados de fé pública. Se não for, solicite outro funcionário até encontrar um que o seja e possa emitir um documento autêntico para efeitos probatórios.
O cidadão tem a obrigação de saber que um documento oficial, assinado por um funcionário, carimbado, afinal não tem valor legal absolutamente nenhum