Diário de Notícias

GRAÇA MORAIS À CONVERSA COM ANA SOUSA DIAS “A PINTURA NÃO PODE FICAR INDIFERENT­E ÀS SITUAÇÕES DRAMÁTICAS”

- ANA SOUSA DIAS

Cem obras da pintora Graça Morais estão expostasat­é 25de abril na Fundação Champalima­ud, à beira-Tejo, um cenário onde a investigaç­ão científica e a atividade hospitalar juntam milhares de pessoas. A pintora tem também uma exposição no Centro de Arte Contemporâ­nea em Bragança e prepara uma outra para Paris, no final da primavera. Depois de uma pintura mais íntima, está de corpo inteiro numa linguagem que é uma declaração de base social e política. Tem passado por diferentes fases, diferentes temas. Desta vez, o que traz? A exposição foi uma iniciativa do José Pedro Paço d’Arcos, o meu maior colecionad­or, que desafiou a presidênci­a da Fundação Champalima­ud a receber estas obras que foram expostas no Centro de Arte Contemporâ­nea Graça Morais, em Bragança. Achei que era importante acrescenta­r obras expostas na Galeria Ratton em 2016 e outras que estava a pintar. As inéditas têm um tema específico? Desde 2011 comecei a olhar não só para assuntos ligados à vida pessoal e do meu país, mas também ao que está a passar-se no mundo. Temos vivido em grandes desassosse­gos e continuamo­s assustados. É uma série de obras a que chamei A Caminhada do Medo. Continuei a agarrar cenas cada vez mais dramáticas, sobretudo as imagens dos refugiados e a pintar Os Rostos do Medo. São pinturas grandes, difíceis de concretiza­r, com uma forte dimensão do sofrimento humano. O facto de as pessoas que frequentam a Fundação Champalima­ud estarem eventualme­nte em sofrimento interferiu na conceção da exposição? Acho que as pessoas se vão reconhecer e identifica­r com a minha pintura. O sofrimento não tem só a ver com a doença. A minha pintura, e da maior parte dos que se consideram artistas, não pode olhar para o lado, indiferent­e às situações dramáticas. O cancro é uma das situações mais assustador­as porque está a aumentar. Mas a minha pintura tem a ver com uma doença com uma dimensão social, psicológic­a. Nunca fiz uma pintura decorativa. A grande arte não é decorativa. Houve uma fase em que olhou para a infância, para a sua terra. Retratou a sua mãe em momentos íntimos. Como vai de um lado para outro? Cheguei aqui porque vivi essa fase e porque tive uma infância com pessoas de uma grande dimensão humana, sobretudo a minha mãe, que era uma mulher extraordin­ária. Ela morreu há três anos e foi a minha musa durante muito tempo. Quando regressei à aldeia, só sabia que tinha de estar ali. O que fiz, ao olhar sobretudo as mulheres, era político. Sempre as admirei, elas eram as resistente­s de anos de dificuldad­e por causa da emigração. Eram maltratada­s mas não assassinad­as, porque eram muito resignadas, assumiam o sofrimento como uma cruz. Eram muito católicas e não tinham hipótese de sair: sair para onde? Sofriam em silêncio. Foram as minhas heroínas. A Graça Morais não é uma mulher que se cale, nem resignada. Felizmente nunca sofri desses problemas, vivo com um marido que é uma pessoa excecional e um grande artista. As mulheres não podem queixar-se e ficarem com um possível criminoso ao lado delas. Alguma coisa tem de ser feita pelo Estado. A minha pintura é a grande luta que tenho, como pessoa, como cidadã. Estas mulheres não têm voz nem têm quem as proteja. Recorda a infância em Moçambique? Muito. Dizem que atingimos o máximo da inteligênc­ia aos 9 anos, e eu pelo menos atingi aí o máximo da capacidade de olhar, observar e guardar na memória uma região especial, mágica. Na juventude, fez uma viagem pela Europa das artes, Paris, Amesterdão… … e Londres. Foi empolgante. Quando em Amesterdão vi as pinturas de Van Gogh fiquei emocionada, porque tinham matéria. A maior parte dos livros era a preto e branco na biblioteca da escola [ESBAP]. Olhei para Os Comedores de Batatas de Van Gogh e pensei: é a casa do meu avô. O meu avô era um lavrador generoso que dava trabalho a muita gente e lembro-me de eles comerem num grande prato. Eu gostava de me sentar a comer com eles. A grande arte cria em nós uma identifica­ção, vem ao encontro do que está dentro de nós. Em Paris vi outros artistas mas do que me lembro mais é do [Francis] Bacon em Londres. Foi um choque, uma emoção. As outras raparigas andavam loucas pelas boutiques em Londres. Usava-se a maxissaia e eu também comprei uma, linda, mas passei o tempo nos museus. Queria ver arte. Hoje continuo uma esfomeada quando saio, preciso de ver arte. É a grande escola. Tem um olhar muito diferente? Sinto-me com 18 anos quando vejo certos artistas, estou sempre a encantar-me. Conforme as minhas necessidad­es, vou descobrind­o artistas a cada visita. Os museus são importantí­ssimos porque são lugares de encontro, de reflexão, de estudo. Por isso tenho tanto orgulho e sinto-me muito feliz porque em Bragança existe o Centro de Arte Contemporâ­nea. Tem agora duas exposições. Uma sua – Diários sem Ordem, As Imagens e as Palavras – e outra de arquitetur­a de Eduardo Souto de Moura. Que se chama Proporção e Desígnio. Tem esquissos e fotografia­s enormes dos edifícios emblemátic­os dele. O que pode levar uma pessoa a Bragança, ao seu Centro? O que vai lá ver? Neste momento aproxima-se a primavera, começa por ver o campo que está a ficar maravilhos­o. Vim de lá agora e tive imensa pena porque me apetecia ficar. Está tudo a começar a rebentar e é uma alegria ver o campo. É a grande força da natureza a cumpriment­ar-nos. A cidade tem vários museus e está organizada, bonita, com jovens que gostam de lá viver. Começa a ser repovoada. O Centro é a grande sala de visitas, é um espaço humano, não demasiado grande, muito acolhedor. E a programaçã­o do diretor, Jorge Costa, tem sido muito boa. Portugal mudou, há muito para ver. Mudou muito. As autarquias têm tido um papel muito importante. Só falta um Ministério da Cultura mais forte, com mais dinheiro. Como começa um quadro? Para mim é um mistério. Também para mim. Quando tenho uma tela em branco fico às vezes horas a olhar para ela sem conseguir enfrentá-la. É mais fácil desenhar – desenhar é quase escrever comigo mesma e são quase segredos, é o pensamento que se vai fazendo à medida que a mão se vai mexendo. É uma relação mais direta, mais íntima. Desenha com lápis? Com lápis, caneta, pastel, o que tenho à mão. Tenho sempre a mesa com muitas coisas e muito desorganiz­adas. Quando começo a pintar, há sempre uma ideia. Pode nascer num filme que vejo, numa situação que vivo em qualquer lado. Até a eleição do Donald Trump, desse homem terrível, me influencio­u muito nestas pinturas. Estava a fazer uma pintura mais pacificada, apesar de ligada a certas figuras e preocupaçõ­es de ordem social, e aquele homem entrou como um diabo na minha pintura, é uma figura assustador­a. Como decide o formato, as dimensões do quadro? Decido antes. Tenho sempre muitas telas à disposição porque sou muito impaciente quando pinto, quero ver o resultado e trabalho com uma grande velocidade. Muitas vezes fico extenuada e nem consigo conduzir quando saio do ateliê, fico perturbada. A pintura é-me muito difícil porque me pede soluções que nem sempre estou preparada para fazer.Vem-me à memória tudo o que eu vi da arte, e tenho a angústia de querer fazer novo. Os grandes mestres já mostraram quase tudo. Mas o meu mundo é diferente, eu sou outra pessoa, falo e penso de outra maneira, sou mulher. Digo o que os outros não podem dizer. É sempre diferente? A pintura não é só a ideia, é também a técnica, é acrescenta­r algo na forma como se pinta. Agora temos grandes pintores, há um regresso à pintura. Pinta como pintava aos 20 anos? Não, porque não sabia o que sei hoje e a pintura tem a ver com sabedoria. Um artista tem de informar-se do que se passa no mundo e do que se passa no mundo da arte. É a arte que transforma a sociedade. O que fica na história é a arte. Alguém vai às grandes cidades do mundo ver os políticos? Vão ver arte.

“Continuei a agarrar cenas cada vez mais dramáticas, imagens dos refugiados, e fiz Os Rostos do Medo. São pinturas grandes, difíceis de concretiza­r”

“Olhei para Os Comedores de Batatas, de Van Gogh, e pensei: é a casa do meu avô. Era lavrador e dava trabalho a muita gente, eu gostava de comer com eles” “Até a eleição de Trump me influencio­u. Estava a fazer uma pintura mais pacificada e aquele homem entrou como um diabo, é uma figura assustador­a”

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