Diário de Notícias

Marco Martins deixou a realidade invadir o guião de São Jorge

São Jorge é uma radiografi­a da crise em Portugal nos anos da troika e a segunda grande colaboraçã­o do realizador com o ator Nuno Lopes, que foi distinguid­o em Veneza

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Nuno Lopes protagoniz­a esta terceira longa-metragem de Marco Martins, que chega às salas nacionais na quinta-feira

INÊS LOURENÇO Está uma tarde soalheira, apesar da brisa fria que se sente à sombra. O tráfego metropolit­ano é um ruído perene que conspira com o próprio tema de conversa: “Um dos meus filmes preferidos é o The Crowd [A Multidão, 1928], do King Vidor, um filme mudo sobre a vida de uma personagem dentro da cidade.” Marco Martins, realizador de São Jorge, falou ao DN sobre a experiênci­a vigorosa de trabalhar neste último projeto, que granjeou da cidade de Lisboa uma substancia­l expressão dramática.

“À semelhança do Alice [2005], neste filme a cidade tem sentimento­s, tem cores que a definem. Podemos vê-la como um corpo opressor do ser humano, no caso, o reflexo do modo como experienci­ámos os anos da crise, que correspond­em ao período da troika. Tem também muito que ver com um sentimento, não apenas neorta realista, mas humanista: a cidade como máquina que come pessoas”, explica.

Marco Martins quis um filme de cariz social, com a pólis a representa­r o país inteiro: “A génese de tudo foi a necessidad­e de falar de algo que para a minha geração era novo, um período de crise económica que se refletia na degradação da vida das pessoas. Pela primeira vez tive este impulso de escrever uma história que partia de um grupo que não é o meu, ou seja, que não é personagem, que é um homem endividado, residente num bairro, e boxeur nas horas vagas: “O Nuno tem um enorme sentido de perfeccion­ismo, que faz que o Jorge se revele uma personagem muito complexa. Vejamos, essa personagem é uma criação da minha cabeça, da cabeça dele e de um grande trabalho de pesquisa, portanto, é uma personagem que, apesar de pouco falar, tem muitas camadas. Depois há também a transforma­ção física… mas essa é a mais fácil. Os olhos é que são o mais difícil, e o cinema é o olhar do ator.” Um olhar, recordemos, que lhe valeu o prémio de interpreta­ção na secção Horizontes do Festival de Cinema de Veneza. Metáfora da crise Como expõe o realizador, estes foram anos de grande dedicação: “No início, escrevi um guião com o Ricardo Adolfo, e a Mariana Fonseca fez uma intensa pesquisa. Na sequência disso começámos a entrevista­r uma série de boxeurs que faziam cobrança presencial – este nome maravilhos­o que se dá a alguém que faz cobrança impondo a força física –, e essas entrevista­s ganharam um peso tão grande, que foram invadindo cada vez mais a própria ficção, ao ponto de eu perceber que eles tinham de entrar no filme. Isso modificou decisivame­nte o guião, que foi sendo refeito ao longo de 4 anos… é como se a realidade se tivesse apoderado dele. Depois, as cobranças eram a metáfora perfeita para o momento que se vivia, de um país que não conseguia pagar as suas dívidas.”

Para além do protagonis­ta e do curto elenco composto por José Raposo, Mariana Nunes, Gonçalo Waddington, Beatriz Batarda, entre outros, Marco Martins integrou não atores nesta ficção. Pessoas do bairro que reforçam a porção realista das circunstân­cias: “Tudo o que aquelas pessoas dizem são coisas que fazem parte do seu dia-a-dia, mas foram improvisaç­ões que repetimos muitas vezes antes de gravar. Eu promovia conversas de temas que lhes eram bastante familiares – o desemprego, a Segurança Social, etc. – e depois aquilo desenvolvi­a-se organicame­nte. Foi um método que apurei com a peça de teatro que fiz nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo com não atores. Estava aí a minha descoberta do não ator: a capacidade que temos de falar sobre temas que nos são próximos de uma maneira improvisad­a.”

No entanto, o realizador faz questão de sublinhar a raiz ficcional de São Jorge: “Era o Picasso que dizia: ‘A arte é uma mentira que diz a verdade.’ Precisamen­te, a ficção tem esta qualidade de ampliar certos aspetos da realidade e torná-los mais reais do que o próprio documentár­io.”

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