Bodes expiatórios salvam a corrupção
Um dos métodos mais irritantes de perpetuação dos vícios que envenenam a nossa sociedade é a utilização do método do “bode expiatório” para entregar à fúria da multidão ululante, a reclamar por justiça na sequência de um escândalo qualquer, um desgraçado alegadamente “poderoso” para ser desfeito em pedaços pela plebe. Depois, acalmado o frenesim, desmobilizada a opinião pública, todos os mecanismos que fabricaram o produto que espoletou a indignação popular continuam, depois de ajustados umas quantas porcas e uns quantos parafusos, sossegada e compassadamente a funcionar.
O exemplo mais óbvio é o sacrifício nos Estados Unidos de Bernie Madoff, o financeiro que usava o esquema de Ponzi para pagar juros elevados a investidores gananciosos e que acabou por falir. Preso em 2008, arrancada a confissão, Madoff é rapidamente condenado a 150 anos de cadeia. Foi uma pena eventualmente justíssima mas que serviu também para serenar a fúria com o falhanço da regulação bancária e com a desonestidade do mercado de valores, revelados pela crise do subprime, e para credibilizar alterações de cosmética no controlo dos mercados que permitiram a continuação dos negócios de cré- dito bancário e bolsista num regime muito semelhante ao que levou a essa crise, espalhada às grandes economias do mundo, contemporânea à fraude e condenação de Madoff. E os contribuintes, anestesiados e baralhados, aceitaram pagar a falência de vários bancos e companhias de seguros.
A “justiça exemplar”, que tanto reclamamos, acaba, muitas vezes, a ser um instrumento manipulado pelos criminosos ou seus cúmplices, que, para salvarem a própria pele, conseguem empurrar para o sacrifício da degola os mais incautos, os mais fragilizados ou os mais tolos do seu meio, ao mesmo tempo que garantem, nos corredores do poder, as reformas legislativas que garantem a perpetuação do situacionismo habitual.
Recordo a sucessão de alguns “bodes expiatórios” apresentados pelo Ministério Público em Portugal: Oliveira Costa, João Rendeiro, Ricardo Salgado, José Sócrates, mais, agora, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e, até, um procurador, Orlando Figueira.
Vejo as acusações, para já apenas no domínio político, que nas últimas semanas impendem sobre Paulo Núncio, ex-secretário de Estado do fisco, pela omissão de informação acerca das transferências financeiras nacionais para paraísos fiscais e sobre o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, pela gestão da falência do BES.
Sim, é importante em todos estes casos perceber o que se passou. Sim, é importante apurar responsabilidades. Sim, é importante mandar para a cadeia quem realmente for culpado e tirar do circuito do poder quem foi incapaz de provar competência, rigor e probidade nos cargos públicos que exerceu.
Mas mais importante é garantir, com a aprendizagem feita, que sejamos capazes de descobrir formas de algumas coisas não voltarem a acontecer – seja transferências de dinheiro sem controlo nem taxação para offshores, seja a concessão de crédito bancário sem garantias, seja a venda de produtos financeiros sem valor, seja a lavagem de dinheiro com cumplicidade política, seja novos esquemas Ponzi na alta finança, seja a satisfação criminosa de interesses de novos “Donos Disto Tudo” que tomaram o lugar dos caídos em desgraça. Sem esse caminho – e nada do que se passou nos últimos dez anos me leva a concluir estarmos a fazê-lo – os nomes que enchem as capas dos jornais em sucessivos escândalos financeiros não passarão de meros bodes expiatórios sacrificados para salvar a corrupção sistémica de sempre.