Um período de nojo (mas ao contrário)
Num país a sério, onde a “ética republicana” fosse vivida como algo sério e não como verbo de encher, um advogado especialista em providenciar aos clientes mil e uma soluções de “otimização fiscal” – a expressão para os ricos que para os pobres é equivalente a “fugir aos impostos” – não deveria poder levar para a governação a sua lógica de segredo, que é precisamente aquela em que assenta a tal “otimização fiscal”.
Porque a lógica dominante da governação não pode ser o segredo, antes a transparência, em nome de valores básicos do princípio democrático, como o de dar instrumentos aos eleitores de escrutínio dos negócios públicos.
Paulo Núncio só obedeceu na secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, ocultando a divulgação das transferências fiscais para offshores, aos princípios instrumentais que utilizava antes como jurista na sua sociedade de advogados (e voltou a fazer noutra sociedade de advogados quando deixou o governo).
A lógica da ocultação inerente na utilização de paraísos fiscais é aquela que sempre formatou os seus atos, primeiro no setor privado e depois no governo. Não será ilegal – mas quando se passa do setor privado para o público torna-se, no mínimo, ilegítimo. Não fez nada no governo pelo combate à utilização de offshores porque antes, no setor privado, também não o fez – pelo contrário.
Núncio levou o mundo em que habita para o governo e ninguém lhe disse à partida que, podendo ser aceitável na relação entre empresas e sociedades de advogados, não é aceitável na coisa pública. E nem é só porque impede o escrutínio; é também porque é um mundo assente na valorização da desigualdade de oportunidades: os ricos podem, os outros não.
As leis dizem – numa formulação cheia de convenientes buracos, reconheça-se – o que pode um político fazer (e não fazer) quando deixa de o ser e vai para a atividade privada. O princípio é: não trabalharás no setor que tutelaste, o chamado “período de nojo”. Mas tão importante como isso é algo que não vem na lei, o sentido oposto deste tráfego: o caminho do privado para o público. É evidente que ninguém pode ser contratado para a governação se no privado fez o contrário de tudo o que se recomenda para a coisa pública. Meia dúzia de princípios éticos bem assentes na cabeça bastam, não é preciso que se inventem novas leis.