Diário de Notícias

Até tu, Curitiba?

- Não há refúgio possível para a promiscuid­ade e para a corrupção quando os dirigentes brasileiro­s teimam em ter com a sua própria terra “uma relação de saque” JOÃO ALMEIDA MOREIRA JORNALISTA — em São Paulo

Ojuiz do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes usa o seu chauffeur para de vez em quando se deslocar a casa do amigo, vizinho e presidente da República, Michel Temer, que mora ali ao lado no Palácio Jaburu, em Brasília. Temer, além de citado na operação Lava-Jato, que tramita no Supremo a que Mendes pertence, ainda aguarda julgamento por suposta irregulari­dade nas contas da campanha presidenci­al de 2014 no Tribunal Superior Eleitoral, a que Mendes não só pertence como preside.

O juiz alega que as reuniões privadas com o vizinho na intimidade do Jaburu se devem a uma amizade de mais de 30 anos – como se isso justificas­se alguma coisa e não fosse, pelo contrário, motivo extra para declaração de impediment­o.

Já em janeiro, Mendes quis ir ao enterro de Mário Soares, em Lisboa. Como decidiu em cima da hora, pediu carona a Temer no avião presidenci­al. Lá cruzaram os dois o Atlântico, acompanhad­os pelo número dois do governo Eliseu Padilha, citado até à raiz dos cabelos na Lava-Jato, e pelo antigo chefe de Estado José Sarney, também investigad­o na Suprema Corte.

Pelo lado económico, ainda bem que Mendes tem o hábito de fazer air pool com os amigos porque, segundo números oficiais, só em 2015 os juízes gastaram 2,1 milhões de euros públicos em viagens aéreas internas e externas.

Um ano antes, o juiz em causa viajara também à capital portuguesa para, em pleno processo de impeachmen­t, participar num seminário lado a lado com Aécio Neves e José Serra, dois dos mais destacados dirigentes do então maior partido da oposição, o PSDB. Foi, aliás, o antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, patrono do PSDB, quem nomeou Mendes, seu jurista de confiança, para o Supremo, em 2002.

Por falar nisso, Lula, sucessor de Fernando Henrique, escolheu para o mesmo Supremo um até então assessor do PT e advogado do sindicato que serviu de berço ao partido. Longe de ter qualidades jurídicas transcende­ntes – pelo contrário, consta – Dias Toffoli chegou ao cargo com a idade recorde de 42 anos, como se fosse um prodígio do direito.

Por causa destas promiscuid­ades, de tempos a tempos alguém defende que o Supremo devia voltar ao Rio de Janeiro, onde estava antes de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer construíre­m Brasília, hoje muito mais um enclave a viver uma realidade paralela do que propriamen­te uma capital do Brasil real. Ou seja, devia abandonar as suas instalaçõe­s na Praça dos Três Poderes desenhada por Costa e Niemeyer para evitar contágio com os outros dois.

A ideia voltou a ser defendida há duas semanas pelo colunista da revista Veja Roberto Pompeu de Toledo. Mas logo leitores reagiram: e porquê no Rio, cidade endividada até à medula, com dois ex-governador­es presos e o atual quase? Melhor seria, sugeriram, que fosse em Curitiba, símbolo brasileiro da luta contra o crime.

Curitiba é a sede do espetacula­r – no bom e no mau sentido – Sergio Moro, juiz da Lava-Jato, e dos seus giudici ragazzini que se dedicam dia e noite à operação como outros jovens juízes se dedicaram à Mani Pulite [Mãos Limpas] dos anos 1990 italianos. Lá, sim, argumentar­am os leitores da Veja, há respeito pelas leis e temor à justiça.

Pois na edição seguinte da mesma revista noticiava-se que a centenas de metros da 13.ª vara da justiça, onde fica o gabinete de Moro, criminosos desviaram milhões de reais de bolsas de estudo da Universida­de Federal do Paraná. Mais: a fraude ocorreu entre 2013 e 2016, os anos em que supostamen­te a Lava-Jato tinha chegado para aterroriza­r os corruptos e moralizar o desmoraliz­ado Brasil. Mais ainda: o próprio Moro é professor lá.

Não, nem Rio nem Curitiba: não há refúgio possível para a promiscuid­ade e para a corrupção quando os dirigentes brasileiro­s teimam em ter com a sua própria terra “uma relação de saque”, como defendeu o psiquiatra Contardo Calligaris. E como só em 2015 os juízes gastaram os tais 2,1 milhões de euros em viagens aéreas, mais vale que Gilmar Mendes e os outros altos magistrado­s fiquem em Brasília, onde ir a casa dos políticos que devem investigar fica a uma baratinha corrida de chauffeur.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal