Diário de Notícias

Antes do 11 de Setembro já existia um universo terrorista

- JOÃO CÉU E SILVA JORNALISTA

Otítulo do romance de Karan Mahajan gera antes de mais curiosidad­e, pois é enigmático: A Associação das Pequenas Bombas. A capa feita de simples asteriscos irá com a leitura lembrar os fragmentos colocados dentro dos invólucros de um artefacto explosivo, que se projetam pelo ar quando se dá a explosão, ferindo de morte quem estiver perto. Será o caso de dois jovens, filhos da família Khurana, que estão num mercado e serão duas entre as mais de cem vítimas que irão morrer no atentado.

Esta informação está na contracapa, portanto não se está a desvendar a história que o autor descreve em trezentas páginas. Uma pilha de folhas que não só marca de morte os que estavam ficcionalm­ente naquele mercado de Nova Deli como provoca um posicionam­ento dos leitores deste romance.

Karan Majahan nasceu em 1984 no mesmo cenário de Nova Deli que usa para a sua narrativa e vive hoje em dia numa cidade do Texas, estado de um país por onde fará andar o elemento do trio de jovens que sobreviver­á ao atentado. Isto tudo num ambiente histórico pré-atentado às Torres Gémeas, ou seja, antes de o grande terror assumir uma presença proeminent­e na memória de quase todos os habitantes do planeta e de o terrorismo passar a orientar o tráfego de valores morais e ideológico­s como passou a decidir o dos aviões e outros alvos de violência.

O que A Associação das Pequenas Bombas traz para cima da mesa é esse tempo em que os atentados já aconteciam mas em que a parte ocidental do mundo pouco lhes ligava por estarem confinados ao Oriente. Quando o romance é publicado, em 2017, o leitor já sabe de tudo o que o terrorismo fez acontecer e reconhece a repercussã­o sob o modo da violência em retaliação aos cartoons escandinav­os, as imagens do ataque à redação da revista Charlie Hebdo, o camião de Nice, a maratona de Boston, isto sem falar do 11 de Setembro de 2001.

Por isso, esta é uma leitura estranha pois trata de um tema que vamos reconhecen­do num flashback constante de factos a partir do ano de 1996, momento em que a história tem início. Depois, ultrapassa­rá cronologic­amente o momento do World Trade Center, mesmo que a densidade da escrita deste autor nos mantenha mais interessad­os no que se passou em Nova Deli do que em Nova Iorque.

O romance tem uma particular­idade, a de criar um certo distanciam­ento entre o leitor e a atual realidade, sempre mais focada no perigo em que a Europa vive, recentrand­o o medo para as regiões da Índia, Paquistão e Afeganistã­o. Recoloca a questão do islão e da tensão criada pela anexação da província de Caxemira. Isto à custa de um retrato muito perfeito dos homens que perpetram estes atentados iniciais e do efeito que provocam nos familiares.

Será esta perspetiva das vítimas que sobrevivem, como é o caso da mãe e do pai dos jovens mortos, que se sobrepõe a todas as grandes análises posteriore­s do terrorismo. Está-se perante o núcleo da dor mais íntima e do efeito borboleta que um ataque no mercado provoca durante décadas em quem fica sem os filhos. O desenvolvi­mento deste ângulo torna-se ainda mais dramático quando se o pode transplant­ar para o resto do mundo onde os atentados têm vindo a matar milhares de pessoas, mesmo que tal transferên­cia só seja possível após o leitor terminar o romance e serenar. Porque a escrita de Mahajan é absorvente e, porque não, pungente, não permitindo que a atenção abandone o livro antes do fim.

Guia espiritual sob a forma de ficção-choque para quem sobrevive a atentados. E para quem os vê de longe

 ??  ?? A Associação das Pequenas Bombas
Karan Mahajan Ed. Relógio D’Água 301 páginas PVP: 17 euros
A Associação das Pequenas Bombas Karan Mahajan Ed. Relógio D’Água 301 páginas PVP: 17 euros
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal