Diário de Notícias

A história de um encontro entre a garagem e a academia

Novo álbum dos Mão Morta regista os concertos com o Remix Ensemble. “Duas estruturas abertas a trocarem galhardete­s e experiênci­as”, diz Adolfo Luxúria Canibal ao DN. Uma declaração política

- MIGUEL MARUJO

Só os mais distraídos podem estranhar o mais recente trabalho dos Mão Morta, resultado de quatro noites de concerto com o Remix Ensemble, a orquestra contemporâ­nea com residência na Casa da Música. Nós Somos Aqueles contra Quem os Nossos Pais nos Avisaram é o registo ao vivo em que a banda de Braga revisita o seu repertório num choque entre a garagem e a academia. Em entrevista ao DN, Adolfo Luxúria Canibal recordou que “este bichinho” vinha já de 2012, com uma experiênci­a ensaiada na Guimarães Capital Europeia da Cultura.

“Nós não queríamos pegar no nosso repertório e dar-lhe um ar sinfónico, não o queríamos adornar, queríamos pô-lo em causa, de alguma forma suscitar uma espécie de choque entre duas formas de olhar e fazer música, entre a forma da garagem, a forma popular, ligada ao rock, e a forma académica, erudita, dos conservató­rios. Para que acontecess­e esse choque e desse frutos, não podíamos estar numa posição perfeitame­nte popular e não podíamos chocar contra alguém perfeita- mente fechado no seu academis- mo. Tinham de ser duas estruturas abertas a trocarem galhardete­s e experiênci­as.”

Os Mão Morta, desafiados pelo Theatro Circo a encerrar as comemoraçõ­es dos cem anos desta estrutura cultural de Braga, em 2016, quiseram fazê-lo com a sinfonieta de 15 elementos, dirigidos pelo maestro Pedro Neves, e arranjos de Telmo Marques. Adolfo não lhes poupa elogios. “O Remix Ensemble é, dentro da música erudita e contemporâ­nea, um agrupament­o de exceção. Achámos que o Remix seria o nosso oponente ideal.”

Não se esperem adornos ou meros ornamentos, os Mão Morta não se domesticar­am. Recordando os primeiros anos, nos anos 1980, Luxúria Canibal lembra que “todos os concertos dessa época eram muito mais viscerais”. “Na altura arranhávam­os muito mal os instrument­os, conseguíam­os fazer o que queríamos mas era limitado pelo que sabíamos – e sabíamos muito pouco, fazíamos coisas muito mais rudes e primitivas do que fazemos hoje.” Mas “a essência dos concertos dos Mão Morta mantém-se. A forma como interpreta­mos visceralme­nte os temas continua a ser idêntica, a sua exterioriz­ação é que já não é a mesma. A forma como encarnamos e como levamos a sério, sem nos levarmos a sério, o que estamos a tocar continua a ser exatamente a mesma.”

Nós Somos Aqueles contra Quem os Nossos Pais nos Avisaram não é só o título deste álbum, é uma declaração política. Mas Adolfo recusa que esta música seja de intervençã­o, pelo menos no “sentido em que se cristalizo­u a ideia” desse género. “Não temos nada a ver com esse tipo de intervençã­o mais imediato.” No entanto, “de alguma forma falamos sobre política, temos um olhar social sobre o mundo, isso temos e não escondemos e fazemos finca-pé em ter a liberdade de o fazer. Não distribuím­os palavras, não chamamos as pessoas à ação”. E regressa ao choque que é este disco. “Quando chegámos ao fim dos nossos espetáculo­s, sentimos que tínhamos ultrapassa­do a diferença, a rutura que existe entre estes dois universos, o olhar o outro como o diferente sem ter receio do outro – que é uma banalidade do quotidiano, basta ver como olhamos para os muçulmanos, para minorias, todo este advento da extrema-direita, do Trump…”

E nós podemos ser aqueles que vos avisamos, tomando as palavras de Adolfo. “Uma pessoa ouve estes temas e não diz ‘ah isto é o património dos Mão Morta com toquezinho­s sinfónicos’. Não, não é, há ali uma revisão completa.” E funciona muito bem.

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O Remix Ensemble não domesticou os Mão Morta. As interpreta­ções dos temas em palco continuam viscerais

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