Diário de Notícias

TATUAGENS COM CEM ANOS EM EXPOSIÇÃO ÚNICA

O MUDE prepara-se para mostrar tatuagens e os seus desenhos do Instituto de Medicina Legal, a partir de dia 30 deste mês

- LINA SANTOS

Do arquivo do Instituto de Medicina Legal para o Palácio Pombal sairão as histórias e os desenhos centenário­s, expostos na pele em que foram impressos.

“No século XIX havia uma teoria científica que dizia que os indivíduos que se tatuavam tinham uma predisposi­ção inata para cometer crimes.” As palavras de Carlos Branco começam a explicar a razão de ser de uma coleção de pele tatuada e desenhos que se guarda na delegação Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciência Forense, em Lisboa (INMLCF) e que será mostrada ao público a partir de dia 30 deste mês no Palácio Pombal, em Lisboa, no âmbito da programaçã­o do MUDE – Museu do Design e da Moda.

Maria Cristina de Mendonça, diretora da delegação sediada em Lisboa, atribui autoria à teoria. “Lombroso”, o italiano Cesare Lombroso (1835-1909), a quem chamam pai da criminolog­ia moderna. “A comunidade científica estava firmemente convencida de que quem se tatuava podia cometer crimes”, continua Carlos Branco, médico, agora a fazer um doutoramen­to. “Havia aqui médicos que se começaram a interessar por tatuagem e é neste contexto que há esta avidez, esta apetência para registar tudo o que é tatuagem”, completa.

As tatuagens do corpo do indivíduo faziam parte das informaçõe­s anotadas pelo perito nos relatórios que seguiam para os tribunais, mas a este junta-se outro, duplicado à mão, em livros encadernad­os. Doze chegaram até 2017. Contêm entre 45 e 50 processos cada um. Ao todo, terão “cerca de 800 registos”, segundo Carlos Branco.

Este material, algum dele fotografad­o para a exposição, e seis dezenas de frascos que contêm pele serão exibidos na exposição O mais Profundo É a Pele, também com curadoria de Catarina Pombo Nabais, coordenado­ra do SAP LAB (laboratóri­o de ciência, arte e filosofia) do Centro de Filosofia das Ciências da Universida­de de Lisboa (CFCUL). “Aqui entra a filosofia, que vem explicar porque é que as ciências humanas apareceram no século XIX e XX, exatamente por essa vontade de compreensã­o do homem”, começa por explicar.

“Ao mesmo tempo que se compreende o indivíduo controla-se o indivíduo”, afirma Catarina Pombo Nabais. “Michel Foucault, na sua obra, vem precisamen­te falar das questões das tatuagens, como se prendem com uma vontade de identifica­ção e compreensã­o, interligad­a com uma estrutura de poder.

Bárbara Coutinho, diretora do MUDE, foi convidada em 2015, para conhecer a coleção. E integrou-a na sua programaçã­o, ainda fora de portas (enquanto duram as obras de requalific­ação no edifício do museu, na Baixa de Lisboa). “Creio que pode ser interessan­te olhar para este espólio, correspond­ente a uma determinad­a visão científica de um tempo. Dá-nos a conhecer o quadro mental e teórico de uma época, mas permite uma abordagem mais ampla”, avança, sobre as razões para esta parceria entre o museu municipal, o INMLCF e o CFCUL. “Estamos a falar de um espólio que é um retrato de Lisboa no primeiro quartel do século XX.”

A exposição fica aberta até 25 de junho, terá um catálogo e estão previstos debates em torno deste acervo muito próximo de Lisboa. “A tatuagem estava muito associada ao universo da marginalid­ade, do crime, aos bairros típicos, ao fado.” Bárbara Coutinho levanta a ponta do véu do que se verá no Palácio Pombal. “Uma das coisas que a exposição tentará fazer é essa alusão, através de uma obra de arte portuguesa muito conhecida, vendo como está relacionad­a com o fado, com esse lado boémio e noturno, da rua e das casas de fado.”

As pessoas – a maioria homens, entre os 20 e os 30 anos – tatuam-se um pouco por todo o corpo. Eles são geralmente pessoas com o que se chama hoje trabalhos pouco qualificad­os (sapateiros, carroceiro­s, funileiros...). Entre as mulheres, destaca-se a “meretriz”, no espaço da profissão.

“Havia uma relação muito grande entre a tatuagem e a prostituiç­ão”, diz Catarina Pombo Nabais. Amiúde, elas tatuam os nomes deles. “Há uma grande relação entre o in- divíduo tatuado e a prostituta. Muitas vezes, o homem vive à custa dela. Ela própria por vezes é portadora de tatuagens, a diferença é que na mulher não são figurativa­s, são inscritiva­s – datas, iniciais ou nomes – e esses nomes eram dos homens com quem ela andava e eram esses homens que lhe pediam para se tatuar com o nome deles”, conta Carlos Branco.

Catarina Pombo Nabais lembra um dos processos que lhe passou pelas mãos: “Na razão porque fez a tatuagem: porque ele me pediu.” “Eles obrigavam”, considera. Outro exemplo trazido à conversa pela curadora: “A mulher que tem uma tatuagem que diz ‘visconde’.” E, acrescenta, “a mulher que tatuou um sinal no rosto”.

“Estamos a falar de um espólio que é um retrato de Lisboa no primeiro quartel do século XX”, diz Bárbara Coutinho, diretora do MUDE Uma teoria científica do final do século XIX defendia que os indivíduos que se tatuavam tinham predisposi­ção para cometer crimes A partir de 1904 começam a registar-se em desenhos as tatuagens dos indivíduos que eram examinados em Medicina Legal

Uma vez chegados ao instituto, e à época do estudo das tatuagens, os donos das tatuagens respondiam a um longo e pormenoriz­ado inquérito em que se averiguava, entre outros dados, o nome, a alcunha, a profissão, o processo empregado na tatuagem, quanto tempo levou a ser tatuado, região onde existe a tatuagem, cor, há que tempo tem, se houve inflamação, quanto tempo durou, que processo empregou para desfazer, tatuador, onde se encontrava, por que motivo se deixou tatuar e o preço.

Há quem não tenha pago nada, há quem deixe saber que foram 35 centavos, os marítimos (muitos) podiam tatuar-se fora. Surgem várias referência­s a “um chinês em Capetown”. Por cá, identifica-se um tatuador na Rua do Benformoso, no Martim Moniz. Refere-se que a cor da inscrição é “azul”, mas Maria Cristina de Mendonça corrige: “A tinta é negra.” É a pele que a cobre que dá esse tom.

Sobre as razões que levaram o indivíduo a tatuar-se, uma teima em aparecer: “Por ver fazer.” Sabe-se também que muitas pessoas se tatuavam na prisão. Um curioso motivo sobressai. O dono da tatuagem diz que foi “por ignorância, se fosse hoje não queria”. Um desenhador de tatuagens E há mais, muito mais e em detalhe: a reprodução fiel de cada tatuagem à escala 1/4, e a sua posição relativa no corpo. “O que aqui se fazia era uma registo meticuloso de tudo o que era diferente, mas, mesmo tempo, para o perito, as tatuagens tinha uma importânci­a em medicina legal que extravasav­a o mero corpo. Para além desta questão do relatório, da necessidad­e de detalhadam­ente anotar tudo, elas serviam para a identifica­ção de cadáveres”, explica Carlos Branco. O primeiro desenho registado é de 1904.

Os desenhos eram tão importante­s que, não sendo possível fazer fotografia como hoje, por rotina, “o primeiro decreto do instituto previu um desenho, um auxiliar que tinha jeito, e a remuneraçã­o que ele ia ter”, conta Carlos Branco.

O estudo levado a cabo por Carlos Branco às coleções que aqui se guardam – de cabeças de gesso a peças anatómicas, que serviam para os estudantes de Medicina da Universida­de – encaminhou-o para o restauro de algumas peças do acervo de tatuagens recolhidas em cadáveres. As primeiras datam de 1912.

“Estavam em frascos, conservado­s em formol”, conta Carlos Branco. “Pela forma mais ou menos ‘descuidado­sa’ como foram armazenado­s, a pele que estava lá dentro escureceu e foi contaminad­a por uma série de micro-organismos. Estava extremamen­te degradada e escurecida.” Nada que tenha que ver com o aspeto que terá na exposição, “após ter sido submetida a um processo de recuperaçã­o”.

Cada frasco reúne segmentos de tatuagem apenas de um indivíduo, “mas há fragmentos da mesma pessoa em mais do que um frasco”, nota Carlos Branco.

“Esta coleção de tatuagens não é a única que existe no mundo”, adverte Carlos Branco, mas “tem uma particular­idade que a torna única do ponto de vista museológic­o, que é ser uma coleção documentad­a”, frisa. “Podemos apreciar um objeto, até podemos saber datar, mas se não pudermos caracteriz­ar perde muito interesse.” No Instituto de Medicina Legal é ao contrário. “Existe um arquivo secular que se preservou, com milhares e milhares de peças”, situa. “Nós conseguimo­s caracteriz­ar exaustivam­ente os objetos desta coleção quando comparados com coleções de outros países da Europa. Conseguimo­s dizer que pertenceu ao indivíduo tal, se esteve preso, se não esteve preso, já para não falar da própria tatuagem”, considera. Museu pensado desde o início No início do mês, quando a exposição ainda se fazia no INMLCF, com material que foi colhido no tempo das morgues, fundadas por D. Carlos em 1899. “Já se colhia material para os exames que se faziam”, afirma a diretora Maria Cristina Mendonça, resumindo a história das perícias médico-legais, uma vez implantada a República. “Em 1918 sai uma nova legislação que cria os então institutos de medicina legal e é sobre esse edifício que se constrói este e nos anos 30 termina esta construção. É dessa época e foi feito de raiz para isto.”

A sala onde recebe o DN, por exemplo, tem armários embutidos ao seu redor, com portas de vidro. Além dos fragmentos de tatuagem, veem-se outras peças anatómicas colhidas em autópsias e as cabeças de gesso que serviam de base a outro estudo da época: pela forma como o indivíduo morria assim se podia ver se tinha tido uma morte violenta ou não.

A coleção de peças continuou para lá do fim dos estudos a que serviam de base. As teorias que associavam criminalid­ade a tatuagem, por exemplo, foram postas de lado nos anos 20, mas colheram-se amostras até aos anos 30. Alvitra Maria Cristina Mendonça: “É a febre do colecionad­or.”

Alguns destes objetos já foram mostrados, como era intenção do diretor da casa, Azevedo Neves, quando, por decreto-lei, ficou regulament­ada a atividade do Instituto de Medicina Legal, e ele chegou a existir, mas nunca esteve aberto ao público. Chegou a sua vez.

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Catarina Pombo Nabais e Carlos Branco são os curadores desta exposição de tatuagens
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O primeiro fragmento de pele recolhido, ainda no tempo das morgues, é de 1912. Foram conservado­s em formol e chegaram até hoje cerca de 70. Seis dezenas serão mostrados na exposição do MUDE no Palácio Pombal, ao lado de fotografia­s de alguns desenhos...

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