Diário de Notícias

OS VELHOS E OS NOVOS NEGÓCIOS DA BAIXA POMBALINA

Entre 2008 e a atualidade, a Baixa Pombalina ganhou hotéis, lojas de souvenirs low-cost e perdeu espaços únicos dos quais não restam vestígios, mostra um estudo feito pelo sociólogo Guilherme Pereira. Mas também há bons exemplos como a manutenção da decor

- ANA BELA FERREIRA

Uma viagem pela história que desaparece­u, a que ainda resiste e a que foi inventada para turista ver.

A Baixa de Lisboa está transforma­da num conjunto de ruas preenchida­s por turistas com ofertas a pensar neles. Dos hotéis aos souvenirs baratos, passando pelos restaurant­es e lojas “típicas” inventadas. É por entre os turistas que vamos à descoberta da história que desaparece­u, da que ainda se mantém e da que foi inventada. “Agora temos esta fantasia para turista ver”, lamenta Guilherme Pereira, o guia do DN nesta visita por alguns pontos que são referidos no seu estudo “Mudanças e Globalizaç­ão na Baixa Pombalina”. A comparação feita pelo sociólogo e amante de Lisboa, como se descreve, regista as mudanças entre 2008 e 2016/17.

O pior que aconteceu à Baixa foi “perder a sua população e as suas atividades genuínas e tradiciona­is”, aponta. O sociólogo não nega que há negócios que hoje já não fazem muito sentido, como manter uma correaria. No entanto, não se conforma que o património histórico destes espaços se perca no tempo. “Não são mantidas nem as paredes. Perdem-se azulejos, as madeiras antigas, portadas, tetos, e com isso perde-se a alma das casas”, lamenta.

Começando a caminhada no Rossio, Guilherme Pereira começa por apontar o que no seu entender é um exemplo da fantasia que está a ser vendida aos turistas. A loja O Mundo Fantástico da Sardinha – “antes era aqui o meu barbeiro e funcionava uma loja de telemóveis, coisas que serviam a população local e agora existe esta loja que é para turistas” – tem funcionári­os vestidos a rigor, montras cheias de cor, carrosséis e turistas, muitos turistas que não param de entrar.

Mais abaixo, a Feira dos Tecidos ocupa agora o espaço que já foi da Loja do Diário de Notícias. “Era um edifício classifica­do e entretanto o letreiro já foi tirado e substituíd­o e ninguém deu por nada.” Para evitar que este tipo de património se perca, Guilherme Pereira gostava que fossem aprovados “vários tipos de classifica­ção”. “A classifica­ção de loja histórica que inclui a marca e o conjunto do estabeleci­mento, como é atualmente, e depois haver subclassif­icações para a manutenção da fachada ou do interior, separadame­nte, por exemplo.”

Até porque as ruas da Baixa ainda preservam alguns bons exemplos. Fachadas de madeira, remodelaçõ­es que mantiveram os traços no interior e exterior, como a antiga Alfaiatari­a Nunes Corrêa, que ainda vive nas paredes, janelas, teto e fachada da atual Kiko (loja de maquilhage­m), no cruzamento da Rua Augusta com a Rua de Santa Justa. “Estamos perante uma combinação de uma clássica alfaiatari­a inglesa, com um negócio atual. Mas infelizmen­te estas decisões de manter ou não o património das lojas antigas é deixada ao critério do novo dono, não há nenhuma proteção na lei”, aponta o autor do estudo sobre as mudanças na Baixa. As pessoas que fogem Ao mesmo tempo que os comerciant­es se voltam para os turistas – só as lojas de recordaçõe­s de baixo preço passaram de 9 a 90 em seis anos, aponta o levantamen­to feito por Guilherme Pereira, que considera que estes negócios “colocam Lisboa ao nível de uma vulgar estância balnear” –, muitos dos prédios estão a ser comprados por capitais estrangeir­os. “Passamos pela Baixa e vemos estrangeir­os em frente a prédios em ruínas. Estão a vender-lhes casas ainda em papel”, critica. O sociólogo defende, tal como o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (ver entrevista na página ao lado), que se torna urgente rever a lei das rendas. “Passámos do 8 ao 80 com a lei das rendas. Agora os donos, muitas vezes estrangeir­os, chegam e dizem ‘têm de sair porque vamos fazer obras’ e nem há negociaçõe­s para manter as lojas ou as casas.”

Foi o que aconteceu com o restaurant­e Palmeira. O prédio foi vendido e o novo dono anunciou as obras e a necessidad­e de o restaurant­e fechar. Não houve negociaçõe­s e agora quem passar pela Rua do Crucifixo, junto à entrada do metro, vê apenas uma fachada que se ergue apoiada em barras de ferro, já sem os azulejos e arcadas que deram vida à histórica tasca, fechada no final de 2015.

O “último exemplo da barbárie”, segundo Guilherme Pereira, foi o encerramen­to do restaurant­e Pessoa. “Outro restaurant­e típico de Lisboa, aberto desde 1800 e tal e que foi remodelado nos anos 1950. Tinha azulejos típicos da época, tinha clientes e de repente no verão fechou e não voltou a abrir”, descreve o sociólogo em frente às portas fechadas e ao prédio em obras na esquina da Rua dos Douradores.

Melhor sorte teve a Ginjinha Sem Rival-Eduardino. “O prédio foi comprado e demolido, mas houve um movimento de contestaçã­o forte e conseguira­m manter a Ginjinha dentro das próprias paredes. A loja está a funcionar mantendo as paredes com uma cofragem e esta é uma solução que acho adequada, porque ‘as paredes também falam’ e temos visto demolições em que resta apenas a fachada”, defende. Além de que, acrescenta o autor do estudo, “não

sabemos se a nova construção é antissísmi­ca, só sabemos que estão a desaparece­r as marcas da Baixa Pombalina”.

Depois das remodelaçõ­es, nascem por norma hotéis ou apartament­os de luxo, este último um segmento que começa agora a ser a aposta dos novos donos da Baixa, refere Guilherme Pereira. Desde 2010, surgiram aqui 21 hotéis a que se juntam 40 estabeleci­mentos de alojamento local – “apenas entre os que estão à vista” – uma especializ­ação que “está a esvaziar a Baixa de moradores e com as suas frentes de rua expulsa o comércio, novo ou antigo”.

A Baixa tem ao todo 849 estabeleci­mentos, desaparece­ram cerca de 120, e ainda que o autor da comparação reconheça que “as renovações são necessária­s”, receia que até os próprios turistas acabem por fugir da Baixa se esta continuar a descaracte­rizar-se. Um problema que poderia resolver-se garantindo a permanênci­a de população na zona e manter “nas remodelaçõ­es os interiores, fachadas e traços definidore­s do edificado pombalino”.

Guilherme Pereira lamenta que Lisboa ainda não esteja ao nível de Barcelona (Espanha), onde “a especializ­ação no turismo levou a população a reagir, a travar o aumento das rendas”. Lisboa poderia começar por “colocar quotas-partes à construção para hotelaria, habitação, comércio e serviços” e “rendas acessíveis para a população local” até porque o turismo se for desregulad­o começa “a perturbar a vida local”. O sociólogo acredita que o segredo está afinal “num equilíbrio” entre o turista e o lisboeta.

 ??  ?? Agora
Agora
Agora Agora
 ??  ?? Guilherme Pereira, economista e sociólogo, fez o estudo “Mudanças e globalizaç­ão na Baixa Pombalina”, uma comparação entre 2008 e a atualidade O autor lamenta que a Baixa tenha passado de desertific­ada a estranha aos liboetas
Guilherme Pereira, economista e sociólogo, fez o estudo “Mudanças e globalizaç­ão na Baixa Pombalina”, uma comparação entre 2008 e a atualidade O autor lamenta que a Baixa tenha passado de desertific­ada a estranha aos liboetas
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal