Diário de Notícias

Mirtha Ibarra: “Revolução cubana é feita por homens e estes têm defeitos”

- SUSANA SALVADOR

A atriz e dramaturga cubana Mirtha Ibarra esteve em Lisboa para o festival de cinema FESTin, onde passou o documentár­io Titón: de Havana a Guantaname­ra, que fez sobre o falecido marido, Tomás Gutierres Alea (1928-1996). Titón, como era conhecido, foi um dos mais prestigios­os realizador­es de Cuba, estando por detrás de filmes como Morango e Chocolate (o único filme cubano nomeado para um Óscar) ou Guantaname­ra, protagoniz­ados por Mirtha Ibarra. Ao DN falou do cinema crítico de Titón e das mudanças que sente atualmente na ilha. No seu documentár­io Titón: de Havana a Guantaname­ra alguém diz que “país que se critica é país que se ama”. Os filmes de Titón eram marcados pela crítica à Revolução Cubana, apesar de a defender. Como é isso possível? A essência do cinema de Titón é a ideia de criticar a realidade, ao mesmo tempo que a reafirmamo­s. Isto é paradoxal e podia parecer contraditó­rio, mas não o é. Ele amava esta realidade, queria defendê-la e pensava que criticando-a era a melhor maneira de o fazer. Porque se não criticarmo­s o que está mal feito, vai ser o outro a fazê-lo, e eu acho que é muito melhor sermos nós a criticar e sermos nós a corrigi-lo, do que pessoas que o façam para prejudicar a revolução. Então era por acreditar na revolução, mas achar que ela não era perfeita... Claro que não é perfeita. A revolução cubana é feita por homens e os homens têm muitos defeitos. Defeitos e virtudes. São mudanças muito radicais que implicam muitas contradiçõ­es e momentos muito difíceis, implicam erros. O que para mim é importante é resgatar a memória dos erros. Não os esquecermo­s, para não os cometermos novamente. Guantaname­ra, o último filme de Titón, é uma crítica à burocracia... Sim, é feito durante o período especial. É um momento muito difícil, quando cai todo o campo socialista e Cuba passa por um momento económico muito duro. E o filme retrata isso. Mas retrata-o com humor, apesar de ser uma crítica muito dura. Um humor que sentimos sempre que, por detrás dele, há amor. A peça de teatro que escreveu e protagoniz­ou, Obsesión Habanera, também é crítica com a realidade. Sim, fala de uma mulher que enfrenta o machismo, os problemas do marido alFalta coólico e também os problemas da sociedade. É uma mulher que trata de superar tudo isso. Os problemas da mulher sempre me interessar­am. Esse tipo de críticas ainda é atual? Bom, a burocracia é um mal universal. Não é um mal cubano. E é difícil sair dele. E ainda há machismo, mas a sociedade mudou muitíssimo em Cuba e mudou muitíssimo no que diz respeito ao papel da mulher. Pertenço a uma geração que rompeu com muitos tabus. Noutros pontos, como a economia, também houve muitas mudanças. Vive em Cuba, como é que está a viver essas mudanças? Vamos lentamente, mas vamos bem. Acho que essa abertura em relação aos alugueres de casas, aos paladares, às cafetarias, funciona, porque essas pessoas têm de contratar outras e há mais emprego e o nível de vida dessas pessoas, tanto dos donos como dos empregados, melhora e enriquece a sociedade. Sentimos isso. Também do ponto de vista arquitetón­ico há mudanças, as casas são pintadas, arranjadas, passamos por uma rua onde não tínhamos visto uma casa bonita e agora descobrimo-la porque está pintada porque a economia está melhor. Mas apesar de tudo mantém-se o bloqueio dos EUA, que faz que muitas coisas sejam caras. Porque não é o mesmo trazer uma coisa dos EUA, logo ali ao lado, do que trazer da China, do Canadá... O fim do bloqueio é o passo que falta dar, mas não depende de Cuba. Têm sido anos de abertura da relação entre Cuba e os EUA. O que vai acontecer agora com Donald Trump? Não sei, ninguém sabe. Não faço a mínima ideia. Toda a gente está à espera para ver o que ele diz. Mas há receio do que ele pode fazer? Não, em Cuba as pessoas continuam a sua vida. Já estamos acostumado­s a que venha um e diga uma coisa, depois venha outro e diga outra coisa. As pessoas levam tudo isto com calma. A morte de Fidel Castro veio mudar alguma coisa? Penso que não, porque era algo que já se esperava, no sentido em que já estava afastado do poder, tinha passado por toda a doença. Mas foi algo muito doloroso para todo o povo cubano e penso que isso se viu nas cerimónias fúnebres. Voltando ao cinema, sente dificuldad­es para fazer cinema em Cuba? uma Lei do Cinema. Não é difícil fazer um filme em Cuba, desde que se tenha dinheiro. Eu estou a procurar apoios para um filme, precisamos de um produtor estrangeir­o que nos apoie. Fiz agora a peça Neurótica Anónima e o diretor Juan Carlos Tabío, que fez o Guantaname­ra e o Morango e Chocolate com Titón, quer fazer um filme. Mas é preciso um guião. E para o fazer temos que ter um adiantamen­to de dinheiro e para o ter precisamos de um produtor. Como não temos produtor, não temos dinheiro. Sem dinheiro, não há guião... Então agora está focada no cinema, deixou de lado o teatro? Eu deixo o teatro durante anos e depois volto... O teatro é a minha formação como atriz e é excelente, porque é ali que aprendemos. Mas é muito duro. Eu gosto muito mais do cinema, porque apesar de adorar teatro, cria-me muito mais stress do que o cinema. Adoro a ideia da perdurabil­idade, que é o que procuram todos os seres humanos. E gosto que permita a autocrític­a, porque quando vemos o filme no ecrã, podemos dizer “não teria feito isto assim, devia ter feito de outra maneira”. E gosto que o filme percorra um espaço maior que o teatro.

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