Diário de Notícias

Da idoneidade de Carlos Costa

- FERNANDA CÂNCIO JORNALISTA

Das duas uma: ou Carlos Costa mente, ou apelou ao investimen­to num banco a cuja direção retirara, “em privado”, a idoneidade. Em qualquer dos casos não se vê como pode ficar

Se a ideia do governador do Banco de Portugal, ao dar esta semana uma entrevista ao Público , era a de refutar as acusações que lhe têm vindo a ser feitas de não ter cumprido os seus deveres no caso BES, pode dizer-se que a coisa lhe correu bastante mal.

A versão que Carlos Costa quer fazer passar é de que fez tudo o que podia, ou seja, tudo o que lhe era permitido pelo enquadrame­nto legal. E, no resumo da entrevista, o jornal afirma isso mesmo: “A legislação em vigor à data dos factos apenas lhe permitia [a Costa] retirar a idoneidade a quem estivesse condenado e com sentença transitada em julgado.”

Para fundamenta­r essa ideia, Costa invoca o facto de existirem duas decisões de tribunais superiores – uma em 2005 e outra em 2012 – que “diziam claramente que a retirada de idoneidade dependia da existência de prévias condenaçõe­s judiciais. E não bastava que tivessem sido proferidas, era necessário que tivessem transitado em julgado.”

Claro que, para começar, decisões judiciais não são legislação; são interpreta­ções da lei. E todos estamos cientes das variadíssi­mas interpreta­ções de uma mesma norma, não raro contraditó­rias, exaradas pelos tribunais nacionais. Mas sucede que as duas decisões judiciais citadas por Costa se referem a decisões tomadas pelo Banco de Portugal quando estava em vigor uma versão da lei anterior à que vigorava em 2013. Ambas analisam retiradas de idoneidade antes de 2008, ano em que a legislação foi alterada de modo a ficar mais claro que a atuação do regulador, com o seu carácter prudencial e preventivo, não se atinha a subscrever sentenças de tribunal (entendimen­to que, de resto, levara o anterior governador, Vítor Constâncio, a adotar esse procedimen­to mesmo antes de a lei ser mudada). Isso mesmo é evidenciad­o numa nota explicativ­a do Banco de Portugal de novembro de 2014.

É verdade que a nota refere uma outra decisão, de um tribunal de primeira instância, datada de janeiro de 2014, essa sim já sobre uma retirada de idoneidade posterior à alteração da lei. Mas, esclarecen­do que considera a decisão errada, o BdeP informa que dela interpôs recurso. Ou seja, quando a questão de retirar a idoneidade aos administra­dores do BES se colocou, não havia qualquer decisão transitada em julgado que referisse a nova redação da lei.

Temos pois de concluir que haveria outras razões, que Costa prefere não invocar. Até porque diz, a seguir, isto: “Como imagina, em outubro, novembro de 2013 ou janeiro de 2014, ter comigo a família Espírito Santo, como tive de uma vez, ou o Dr. Ricardo Salgado, ou todos os outros e dizer-lhes, cara a cara, ‘os senhores não têm idoneidade para continuar à frente de uma instituiçã­o’ (...) foi um ato de afirmação de grande independên­cia e da capacidade do BdeP para interpreta­r de forma estrita a lei.” Pára tudo: então Costa retirou “em privado”a idoneidade à direção do BES, o mais tardar (incompreen­sível o facto de apresentar três datas distintas, e que quem o entrevista não lhe peça sobre tal o imprescind­ível esclarecim­ento) em janeiro de 2014? E, já agora, fê-lo baseado em quê? Ou seja, que procedimen­tos levaram a essa declaração privada de falta de idoneidade? E a que ponto esses procedimen­tos punham em causa a integridad­e e viabilidad­e do banco?

Nada disso é perguntado e nada disso é esclarecid­o. Mas recorde-se que em agosto de 2014, na declaração ao país sobre a resolução do BES, o governador afirmou que sabia desde setembro de 2013 que o Grupo Espírito Santo “desenvolve­u um sistema fraudulent­o entre empresas do grupo”. Dias depois, inquirido no Parlamento, negava: “Salvo alguma perda de memória não referi fraude.” Certo é que permitiu que a direção à qual, garante, transmitiu a sua declaração de falta de idoneidade se mantivesse em funções até junho de 2014, autorizand­o que realizasse ainda, em maio, um aumento de capital.

Portanto, das duas uma: ou nunca disse à direção do BES, entre outubro de 2013 e janeiro de 2014, que não tinha idoneidade – e mente – ou disse mas manteve-a em funções e, mais, consideran­do que o banco estava em mãos não idóneas, que suspeitava (ou tinha a certeza) serem autoras de fraude, apelou a que milhares de pessoas nele investisse­m ao atestar que estava “sólido”. Nenhuma das alternativ­as aconselha que se mantenha no cargo.

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