“A Callas tinha os registos todos. Ela conseguia levar uma nota até ao fim da respiração”
O maestro pede para contar uma história que corre entre os músicos: “Há a anedota de perguntarem a Donizetti como é que compôs O Elixir do Amor em pouco mais de uma semana. Se ele sabia que Rossini demorou duas semanas a compor O Barbeiro de Sevilha. Pois, respondeu Donizetti, mas Rossini era um preguiçoso.”
Envio um sms a Pedro Amaral a dizer que estou atrasado para o nosso almoço em Almada. O maestro responde “sem problema”, que também ele está ainda a chegar. E como nenhum de nós, juramos mutuamente depois, costuma ignorar as horas marcadas, a culpa (é óbvio!) só pode ser do próprio Ponto Final. O restaurante está tão em cima do Tejo, no cais do Ginjal, que só se chega cá a pé e não há sítio para arrumar o carro nas imediações.
“Vir por Cacilhas a pé é o melhor”, argumenta Pedro Amaral, diretor artístico da Metropolitana, uma das orquestras com sede em Lisboa. Foi sua a escolha do local e nem é preciso chegar a comida para se perceber o porquê, estacionamento à parte. Do outro lado do rio avista-se a capital em todo o seu esplendor, com o casario a subir do Tejo para as colinas. “Magnífico, não acha?”, pergunta Pedro. Concordo eu e também, tenho a certeza, as duas dúzias de turistas de cabelos loiros que ocupam a primeira linha de mesas amarelas, aquelas mesmo junto à água. O dia está soalheiro e só não digo que o azul do Tejo é incomparável porque nasci em Setúbal e o Sado merece bem a sua fama.
Estão a ser uns dias atarefados para o jovem maestro, que fez em janeiro 45 anos. Sei que está a compor uma ópera, que tem de estar pronta no verão, mas antes de falarmos desse projeto intitulado Beaumarchais há que escolher os pratos. Pedro (tratámo-nos logo pelo primeiro nome) passa os olhos pela ementa e não hesita: “Arroz de cabidela.” E explica: “Gosto muito. E sempre que aqui venho peço o mesmo. Fazem a galinha e o arroz muito bem.” Para mim, estreante no Ponto Final, a escolha demora mais. Acabo por encomendar uns carapauzinhos fritos com arroz de tomate. Para beber concordamos em pedir só água, com o maestro a admitir que aprecia vinho mas que quando tem ainda de ir trabalhar evita beber “para não ficar mole”. Já a cerveja não entra nas preferências, bebendo “poucas vezes”.
Façamos agora uma breve apresentação de Pedro Amaral, do qual já disse ter 45 anos, ser maestro, dirigir a Metropolitana e ter nas mãos uma ópera em construção. “Sou lisboeta. Divorciado e pai de três filhos. Licenciei-me em Composição na Escola Superior de Música de Lisboa e fiz mestrado e doutoramento em Paris. Desde 2013 sou diretor artístico da Metropolitana. E, embora agora não esteja a dar aulas, sou professor na Universidade de Évora”, resume o próprio, a meu pedido.
Conto a Pedro como me surgiu a ideia deste Almoço com, desafiá-lo a ser o convidado desta edição de sábado. Foi depois de assistir com os meus filhos no Teatro Thalia, num domingo de manhã, àquilo a que a Metropolitana chama de O Dia Seguinte. No fundo, tratou-se da interpretação acelerada de La Clemenza di Tito, com várias árias cantadas e depois o maestro a explicá-las e a enquadrá-las. Quem assiste, senta-se no meio dos músicos e durante uma hora tem uma experiência diferente sobre a peça que pode (ou não) ter visto na noite anterior. “Tem sido um grande sucesso. Faz parte da nossa missão pedagógica, de cativar o público e atrair mais gente”, explica o maestro, que me surpreendeu pela forma como, no teatro recuperado na Estrada das Laranjeiras contou não só o enredo de La Clemenza di Tito (um imperador romano que perdoa mesmo quem o tentou matar), como o contexto histórico da criação, por um Mozart já perto do final da vida.
Chega, entretanto, o arroz de cabidela. Só o cheiro já inspira o maestro. “Está muito bom, sem dúvida.” E comenta, em aparte justificado, como gosta dos cozinhados da mãe, Fernanda, cozinheira fantástica, nascida em Cinfães, “que põe o sentimento naquilo que faz e me deixou um forte encanto pelo Douro”. É o mote para se falar da sua profissão de músico, uma daquelas que só pode resultar se ao saber se juntar o tal sentimento. Pedro concorda. Diz que começou a aprender piano com 8 anos, o que “é relativamente tarde”. E foi depressa que começou a querer escrever o que tocava. Pergunto se ser compositor ajuda a ser melhor intérprete e o maestro concorda, sublinhando, porém, que “99% dos músicos são só intérpretes”.
Quando terminou o 12.º ano inscreveu-se, com toda a lógica, na Escola Superior de Música de Lisboa. Mas matriculou-se também em Filosofia na Clássica, mesmo que depois não tenha ido a nenhuma aula, pois não dava para conciliar e até a lei punha obstáculos a dois cursos. Conta que teve a sorte de ter tido professoras que o motivaram muito e que a filha o surpreendeu agora ao dizer que gostava de ir para Filosofia. Trata-se de Marta, de 17 anos, a mais velha. A seguir vêm Mateus, de 15, e Manuel, de 13. “Aprende-se bastante com a filosofia. Recordo-me de um ditado chinês que a minha professora de Filosofia do 12.º ano citava e que me impressionou pela sabedoria.” E qual é? “Se queres alimentar um povo um ano semeia trigo. Se queres alimentá-lo dez anos planta árvores. Mas se o quiseres alimentar por cem anos educa-o”, recorda Pedro sem dificuldade. Percebe-se o valor que dá à educação, sua, dos filhos, da sociedade. Talvez por isso se revele tanto o professor como o maestro quando faz O Dia Seguinte.
Os meus carapauzinhos já chegaram. Estão bem fritos e saborosos mas não merecem o diminutivo. Quanto ao arroz de tomate, nada a dizer. Ou, pelo contrário, tudo a dizer. Está ali mão de mestre, o que explica que não seja só pela vista de Lisboa que o Ponto Final tem êxito.
Voltemos ao curso na Escola Superior de Música. “Sabia que queria compor. E isto ainda muito antes, como já disse. E precisava de um mestre. Falei com o Lopes-Graça e ele disse-me para ir a casa dele todos os domingos. Era na Parede, uma casa recheada de livros, também com alguns quadros da Vieira da Silva.” Depois, mais um mestre. “Já no curso, aprendi muito com Christopher Bochmann. É um inglês que vive há uns 40 anos em Portugal. Hoje é professor catedrático na Universidade de Évora.” E depois um terceiro mestre ainda, muito especial: “Eu queria mesmo estudar muito com o Emanuel Nunes, que estava em França. E pedi uma bolsa à Gulbenkian. Fui então para Paris, estávamos em 1994.”
Bacharel, mestre e entretanto também doutor, com uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia a substituir a da Gulbenkian. Em Paris, onde vivia com a ex-mulher, também bolseira, Pedro completa o Doutoramento em Música e Musicologia do Século XX. A família, entretanto, vai crescendo e a bolsa exige disciplina nas contas, “mas não demasiado. Além disso, ia recebendo os direitos de autor, uma espécie de 13.º mês”.
Depois de doutorado, concorre ao Prémio de Roma, “prestigiadíssimo, criado no século XVII pelos reis franceses, que mandavam os melhores estudantes para Itália aprender com os mestres. Vivi na Villa Médicis um ano e meio. Foi tempo de trabalho intenso mas recompensador. Tudo era inspirador. Tinha ainda de conciliar com a família, que ficara a viver em França”, conta o maestro.
O regresso a Portugal dá-se em 2006, mas mesmo assim não é a tempo inteiro, pois o mundo da música clássica não convive bem com fronteiras. “Vivia cá metade do tempo e a outra metade na Alemanha, perto de Colónia, em Kurten. Estava a trabalhar com o maestro Stockhausen, um homem genial. É o autor de Momente, que foi o tema da minha tese. É uma obra aberta e a versão que editámos os dois é aquela que hoje é tocada”. E já teve a oportunidade de a interpretar, pergunto? “Já”, ri-se.
Por voltar a encher o copo com água quando fala da etapa de vida na Alemanha junto a Karlheinz Stockhausen, Pedro relembra-se que foi nessa época que começou a dar uma oportunidade aos vinhos brancos. Antes só apreciava tinto. “Os alemães produzem
ótimos vinhos”, conta. E sugere uma descoberta recente, um vinho português, do tal Douro que o encanta, o Quinta do Cidrô. Pois, talvez tivesse sido uma boa escolha para acompanhar o arroz e os carapauzinhos encorpados...
Em Portugal, Pedro dava aulas na Universidade de Évora, a convite de Bochmann, um dos seus velhos mestres, que entretanto se instalara no Alentejo para dirigir o departamento de música de uma escola cujas origens remontam ao século XV, quando os jesuítas fundaram o Colégio do Espírito Santo. O maestro interrompe as próprias palavras para fazer um esclarecimento: “Tenho horror à dispersão. Faço várias coisas ao mesmo tempo, às vezes muitas, mas são sempre manifestações da minha profissão. Sou compositor e também sou intérprete.”
Aproveito para perguntar quais os compositores que mais aprecia. “Sabe, o intérprete e o compositor não pensam da mesma forma. Quando estou num tempo de intérprete, virado para fora, é diferente de um tempo de compositor, que é virado para dentro”, explica. E isso reflete-se nas preferências. Num caso adora Britten e Bartók, noutro aponta Bach, Beethoven, Bruckner, Mahler, Mozart e Schubert. E confessa que adora ler sobre a época em que o compositor viveu, que circunstâncias rodearam a criação de uma obra, como era a vida do autor. “O maestro tem de ser a pessoa que mais sabe sobre aquilo que está a interpretar”, sentencia. Já agora, curiosidade de leigo, peço a opinião sobre Maria Callas. “A Callas era uma cantora muito especial, tinha os registos todos. Ela conseguia levar uma nota até ao fim do fio de ar, da respiração”, responde Pedro. E, de repente, refere um nome contemporâneo, Cecilia Bartolli: “Tem um marketing extraordinário à volta delas, como dizem, mas ela própria é extraordinária.” Não lhe consigo arrancar mais avaliações, seja de sopranos, seja de tenores. Diz só que “há muitos nomes de valor”.
O almoço vai longo e o Sol tão a ocidente que a sombra começa a ganhar terreno no cais do Ginjal. Com doses tão abundantes, que renderam bem ao longo de duas horas de conversa, decidimos ignorar as sobremesas. Que venham dois cafés. Falta falar ainda um pouco da Metropolitana e da ópera Beaumarchais, mas antes Pedro toca o tema das viagens, que sempre fez, fosse à China em 1997 durante um mês e meio, quando ainda não era pai, fosse à Índia e ao Nepal, como fez há pouco tempo com um dos filhos. “Viajar revela-nos muito que não vemos nos livros. Por exemplo, um dia na Índia, ouvi um som maravilhoso. Era um jovem a tocar tablas, um instrumento tradicional. Fiquei a ouvir, encantado. Foi em Udaipur. Mas no final, o músico disse que queria que ouvíssemos algo muito interessante e começou com a música de Bollywood, já muito ocidentalizada.” Comento que também a música clássica era europeia na origem mas que se tornou universal. Concorda, e sublinha que grandes músicos vêm hoje de outros continentes, sobretudo da Ásia, com chineses, japoneses e sul-coreanos a darem cartas nas orquestras e nas companhias de ópera. A Metropolitana tocou Mozart, um compositor que faz parte do panteão do maestro Pedro Amaral. “Mozart soube juntar à ópera tradicional elementos de ópera bufa e isso explica o seu sucesso não só no final do século XVIII como hoje”, nota. Cosi Fan Tutte, Don Giovanni, As Bodas de Fígaro e A Flauta Mágica são inovadoras, sublinha o maestro. E chama-me a atenção para a necessidade de olhar com atenção, por exemplo, para A Flauta Mágica. “Tem um lado muito filosófico, um certo espírito maçónico, também um lado lúdico, e revela uma grande camaradagem com o mundo do teatro”. De Mozart, além da genialidade, devemos apreciar “a vontade de cativar o público, os vários públicos, mas sempre mantendo um patamar de excelência”, acrescenta Pedro.
Sobre a sua ópera Beaumarchais, conta que “vai estrear-se no final de junho. É uma encomenda da Fundação Gulbenkian e a ideia foi a Gulbenkian juntar-se ao Teatro Nacional D. Maria II, e um homem da música a um do teatro, Jorge Andrade, da Mala Voadora, para criarem um espetáculo que tenha texto e música e por base os três textos de Pierre Beaumarchais – O Barbeiro de Sevilha, As Bodas de Fígaro e A Mãe Culpada”. Está explicada a carga de trabalho que ainda o espera depois do almoço. “É que hoje não se produz ópera com a mesma rapidez do passado, quando havia uma estandardização que fazia milagres”, sublinha o maestro. E pede para contar uma história que corre entre os músicos: “Há a anedota de perguntarem a Donizetti como é que compôs O Elixir do Amor em pouco mais de uma semana. Se ele sabia que Rossini demorou duas semanas a compor O Barbeiro de Sevilha. Pois, respondeu Donizetti, mas Rossini era um preguiçoso.”
À frente da Metropolitana desde 2013, descobriu por experiência própria que ser diretor artístico significa ser maestro mas também gestor. E no caso da sua orquestra, como muitas outras, também ser uma espécie de secretário-geral das Nações Unidas, lanço. Ri-se. “De certa forma. Temos 37 músicos, desde chineses a romenos, passando por espanhóis, franceses, ucranianos ou húngaros.” E, claro, há também os casamentos entre músicos de países diferentes, o que reforça a ideia-feita de que a música, sobretudo a clássica, é uma linguagem universal.
Com vários associados, a Metropolitana tem a Câmara Municipal por principal parceiro, com a vereadora da Cultura Catarina Vaz Pinto a presidir à direção e António Mega Ferreira a ser o diretor executivo. “São 200 concertos por ano, metade em formação de orquestra, a outra metade em formação de câmara”, explica o maestro. E como casas usa três: o Thalia, para a temporada clássica, o Museu Nacional de Arte Antiga, para a barroca, e o CCB, para a sinfónica. E depois há o resto do país, onde a Metropolitana também quer estar presente num esforço de democratização do acesso à alta cultura.
Hoje à noite quem está a ler este Almoço com tanto pode ir ao Thalia, na Estrada das Laranjeiras, ouvir a música de Prokofiev e Haydn, como dar um salto a Setúbal e no cineteatro Luísa Todi ver o pianista Artur Pizarro tocar também com a Orquestra Metropolitana (versão académica) obras de Poulenc e Honegger. Talvez até dê para conciliar com um almoço no Ponto Final ou pelo menos um passeio à beira-Tejo antes de ir à cidade do Sado, a tal do rio azul, azul (passe a propaganda!).
Sobre a sua ópera Beaumarchais, conta que “vai estrear-se no final de junho. É uma encomenda da Fundação Gulbenkian e a ideia foi a Gulbenkian juntar-se ao Teatro Nacional D. Maria II, e um homem da música a um do teatro, Jorge Andrade, da Mala Voadora, para criarem um espetáculo que tenha texto e música e por base os três textos de Beaumarchais, O Barbeiro de Sevilha, As Bodas de Fígaro e A Mãe Culpada”.