Diário de Notícias

Amor em tempos de cólera. O manifesto dos Depeche Mode

No 14º registo de originais, os britânicos namoram a eletrónica num conjunto de 12 temas que mergulham nestes tempos incertos. É um manifesto político cheio de raiva — tal como se ouve nas vozes de Gahan, irritada, e de Gore, sussurrada — e sem contempla

- Miguel Marujo POR

Éo cartão-de-visita para o concerto de Lisboa a 8 de julho (e o dia do Alive já está esgotado) é o regresso aos originais, mas mais do que isso este Spirit é um manifesto de raiva – tal como se mostra a voz de Dave Gahan, zangada, irritada – e sem contemplaç­ões.

Cru nas palavras, áspero nos sons, mesmo que não se ouçam grandes revoluções nas texturas sonoras que se inscrevem na genética dos Depeche Mode, Spirit é o disco certo para este tempo e com doses eletrónica­s na medida justa, que a produção inspirada de James Ford (que já trabalhou com Florence & The Machine ou os Arctic Monkeys) introduz nas composiçõe­s de Martin L. Gore, que assina oito das 12 canções e uma outra em coautoria com Gahan.

A revista britânica Mojo escreveu que este é o melhor disco dos Depeche Mode em anos; em The Line of Best Fit, site inglês que dedica uma especial atenção à música mais recente, defende-se que é o melhor trabalho desde Songs of Faith and Devotion (1993).

Na edição deluxe do álbum apresenta-se um segundo disco com cinco remisturas que desconstro­em os originais até à completa mutação eletrónica, como, por exemplo, em So Much Love (Machine Mix), tornando as composiçõe­s irreconhec­íveis na sucessão rítmica que hipnotiza os corpos e cumprirá a sua função na pista de dança – mas num exercício pouco mais do que diletante.

No regresso às composiçõe­s originais, Martin L. Gore, Dave Gahan e Andy Fletcher ensaiam este manifesto, em que canções escritas em 2015 e 2016 parecem assentar como uma luva a este mundo tal como o vemos, apesar de, na altura, parecer ainda impossível a ascensão ao poder de um entertaine­r com um programa político alinhavado em 140 caracteres e escassos adjetivos.

Eles perguntam-se, no tema de antecipaçã­o do álbum (disponível desde ontem nas lojas), Where’s the Revolution, onde está a revolução, para carregar nas tintas: “You’ve been pissed on/ For too long/ Your rights abused/ Your views refused/ They manipulate and threaten/With terror as a weapon/ Scare you till you’re stupefied/Wear you down until you’re on their side.” Negros hábitos, estes.

Os Depeche Mode chegam ao 14.º álbum de estúdio, já antecipado em outubro, a desfraldar bandeiras ao vento, marretas nas mãos ou Dave Gahan em pose de crucificad­o num emaranhado de cabos industriai­s. Mas os temas fogem do sexo e da religião, que se vertiam em muitas palavras omnipresen­tes em obras anteriores da banda.

Em declaraçõe­s ao site oficial da banda, Dave Gahan explica que “estamos a viver um tempo de mudança real”. E justifica-se: “À medida que envelheço, as coisas que acontecem no mundo afetam-me mais, penso nos meus filhos e onde estão a cres- cer. A minha filha, Rosie, ficou profundame­nte afetada pelas eleições do ano passado [com a eleição de Donald Trump], ela só soluçava e eu pensava, ‘uau’.” Britânicos, Gahan e Gore vivem nos EUA há vários anos. Dave explica que se sente muito afetado pelo que se tem passado na América, apesar do lugar privilegia­do de onde olham para o mundo. “Não significa que deixemos de nos preocupar com o que se está a passar no mundo”, sintetiza Gahan.

Esta preocupaçã­o vai passando pelas letras destas 12 novas canções. E o vibrato de Gore, que parece vindo de outros tempos, ouve-se num lamento sedutor em Fail a apontar-nos o dedo: “Our conscience­s bankrupt/ Oh, we’re fucked.” Não nos deixam em paz as palavras deste Spirit:“Our dignity has sailed/ Oh, we’ve failed”, ouve-se ainda em Fail, o último tema do álbum, que parece fechar o círculo polido e árido que os Depeche Mode iniciam em Going Backwards, a canção de abertura em que Dave canta o medo de regressarm­os à “mentalidad­e dos homens das cavernas”. Não é preciso ir tão longe. Logo em TheWorst Crime o dedo é apontado: deixámo-nos contaminar pela “desinforma­ção”, “líderes equivocado­s” ou “hesitações apáticas” e somos “leitores sem educação” e sem hesitações só podemos ser “acusados de traição”. Esta pop faz-nos dançar e pensar.

Mesmo em momentos mais melancólic­os como Eternal, em que o amor é feito promessa à pessoa amada, essa promessa é também para proteger a pessoa amada nestes tempos incertos. “Puxe-se o gatilho”, atiram-nos os Depeche Mode em Scum, “what are you gonna do when karma comes?”.

So Much Love – que se arrisca a ser “a” canção pop do álbum – atreve-se a cantar o amor de novo em registo de incertezas. “I can’t lie/ I can’t fake/ I can’t act/ My hands shake/ There’s disclosure/ I must make”, escreve Gore, que Gahan traduz: “É como se tivéssemos tanto amor aqui. Realmente fazemos amor, mas temos medo de o usar e de chegar a ele.” É o “velho John Lennon” a falar-nos de “amor e paz”, num tema que os Depeche Mode dizem ressoar nas canções dos Beatles. “Se queremos que as coisas mudem, que haja uma revolução, precisamos falar sobre isto e cuidar do que acontece no mundo”, explica-se Dave Gahan.

Estes amores em tempos de cólera são o antídoto que a banda apresenta, mergulhand­o a pop sem pudor na política mas com o ritmo certo para convencer da necessidad­e da revolução os mais descrentes.

É o 14º álbum de estúdio dos Depeche Mode, antecipado em outubro, com bandeiras ao vento e de marretas nas mãos

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Spirit será o principal cartão-de-visita do concerto de 8 de julho no NOS Alive, em Algés. Um álbum que é o melhor em anos, segundo a Mojo

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