Diário de Notícias

JOGAR COM BOSCH NUMA MÁQUINA DE FLIPPERS

A instalação de Rodrigo García no Museu Nacional de Arte Antiga e outras propostas da Boca, a bienal de artes contemporâ­neas, a partir de hoje em Lisboa e no Porto. Maria João Caetano

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SSente-se um cheiro intenso a incenso à medida que passamos pelas vitrinas com as peças de joalharia magnificam­ente trabalhada­s em prata. O cheiro vem da sala de exposições temporária­s do piso 1. Lá dentro, do negro do chão e das paredes sobressai uma colorida máquina de flippers. Puxamos a alavanca, a bola dispara e ao mesmo tempo a música litúrgica dá lugar a gemidos, gritos e outras canções. É preciso não deixar cair a bola, acumulando bónus sempre que caímos no caldeirão infernal, recebendo felicitaçõ­es atrevidas a cada disparo bem-sucedido. Tanto se pode ouvir Sacrifice, de Elton John, como Like a Virgin, de Madonna, mas também há Roberto Carlos a dar graças a deus e até um fado. Cheira a incenso e naquela máquina colorida a luta é entre deus e o diabo, o céu e o inferno.

Esta é Pinball Bosch, a instalação que o dramaturgo e encenador Rodrigo García criou a partir do tríptico As Tentações de Santo Antão, de Bosch, e que pode ser vista – mais do que vista, sentida, jogada, desfrutada – a poucos metros da obra que lhe deu origem, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa.

E esta é apenas uma das muitas propostas da Boca – Biennial of Contempora­ry Arts, que arrancou ontem e que até ao final de abril leva a ideia de cruzamento mais longe do que é habitual. Ao longo de dois meses, em Lisboa e no Porto, serão apresentad­as mais de 30 obras, na sua maioria novas criações, que surgem deste desafio de colocar artistas e espectador­es em território­s que não são os seus território­s habituais. Criar fora da zona de conforto O artista visual Vhils apresenta a sua primeira “criação de palco” e vai ser logo no palco do Centro Cultural de Belém. A coreógrafa Tânia Carvalho vai mostrar os seus desenhos numa exposição. A realizador­a Salomé Lamas vai criar um espetáculo mas também está a preparar um projeto com a Orquestra Gulbenkian. A artista cubana Tania Bruguera vai para além das performanc­es que costuma apresentar e atreve-se a fazer Fim de Partida, de Beckett. E mais, muito mais.

A ideia foi de John Romão, ator, encenador e curioso, que nunca deixou os seus interesses ficarem limitados pelas fronteiras entre as várias disciplina­s artísticas. Até porque essas fronteiras são cada vez mais ténues. “Há vários artistas que operam nesta ideia de absorção de referência­s de práticas que não são especifica­mente as suas. Isso sempre aconteceu mas as linguagens estão cada vez mais híbridas. É mais do que a multidisci­plinaridad­e que esteve na moda nos anos 90 e em que ainda era possível identifica­r cada território. Agora há um fluxo constante de informação, uma dinâmica de abertura, de expansão”, explica. E foi por isso que sentiu falta de uma programaçã­o que refletisse sobre estes cruzamento­s.

“Como qualquer outra criação, esta surge de uma necessidad­e. Eu achava que fazia falta uma programaçã­o que tornasse primordial esta prática e este tipo de linguagens, a forma como cada território artístico trata o outro, não de forma excecional ou exótica mas como alteridade, com abertura e responsabi­lidade.” Tudo nasce do diálogo. A dinâmica da Boca é, portanto, a da criação de um contexto para outros habitarem – outros que são instituiçõ­es, artistas, públicos.

Podia ser um festival, mas John Romão queria que os projetos tivessem uma consistênc­ia e uma duração maiores. Era preciso uma bienal. E é também por isso que, para além do já de si intenso projeto de apresentaç­ões nestes dois meses, há um programa educativo, workshops, masterclas­ses, conversas, apresentaç­ões noutros pontos do país (Castelo Branco, Viseu, Évora, etc.) e quatro artistas residentes (Salomé Lamas, Musa Paradisíac­a, Tania Bruguera e François Chaignaud) cujo trabalho vai continuar ao longo de dois anos. A lista de instituiçõ­es que se associam ao programa vai do Teatro Nacional de São Carlos à discoteca Lux/Frágil, passando pelo Teatro da Politécnic­a, a Negócio/ZDB, a Fundação Calouste Gulbenkian ou a Casa da Música. Contrariar as regras do museu O argentino Rodrigo García já tinha visitado o MNAA como turista mas, há dois anos, quando esteve em Lisboa a apresentar o espetáculo 4, o amigo e colaborado­r John Romão levou-o de novo até ao museu das Janelas Verdes, já com a ideia de lhe propor uma criação inspirada em alguma das obras ali expostas.

A ideia não seria estranha a García, que cita frequentem­ente nos seus espetáculo­s outras obras de arte, nomeadamen­te a Crucificaç­ão de Rubens (em Golgota Picnic, de 2011), os frescos de Masaccio (em Esto Es así y a Mí no Me Jodáis, 2010) ou A Origem do Mundo, de Courbet (em 4, de 2015). Nessa visita ao Museu Nacional de Arte Antiga ficou logo interessad­o nas Tentações de Bosch. “Tive imediatame­nte a ideia do pinball, que era um jogo com que eu brincava muito em criança”, conta.

A primeira coisa que soube sobre esta instalação foi que queria

“Tudo assenta no diálogo. Entre mim, os criadores, as instituiçõ­es. Não há propostas fechadas, tudo pode ser questionad­o”

John Romão

Ator, encenador e diretor da Boca

usar a obra de Bosch num objeto. “É uma profanação. Em todas as lojas dos museus em todo o mundo vendem-se T-shirts, malas, canecas com reproduçõe­s das obras. As pessoas quase não veem as obras mas levam a Mona Lisa, de Da Vinci, ou Os Girassóis, de Van Gogh, numa caneca. Isso diz muito sobre a sociedade atual de consumo”, explica. A mesa de flippers foi totalmente desmontada e decorada com as muitas figuras – humanas e não humanas – d’As Tentações de Santo Antão. “Este é um universo onírico muito atrativo, havia muito para ser explorado.”

Ao mesmo tempo, Rodrigo García queria contrariar aquilo que é geralmente o dispositiv­o expositivo num museu: “Não se pode tocar nas obras e tem de se estar em silêncio, não se pode fazer barulho. Aqui não só tens de mexer como tens de jogar, se não lhe mexes a obra não funciona. E aqui há muitos ruídos. É um contraste enorme. Os museus são para ser vistos mas esta obra também tem de ser tocada, ouvida e cheirada.”

Esta é a sua primeira obra sem atores mas, por outro lado, afirma, é como se os visitantes do museu se transforma­ssem em atores. É possível jogar até 30 de abril. E o melhor de tudo: nem é preciso introduzir moedas.

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