Diário de Notícias

Alcoólicos Anónimos ainda lutam contra preconceit­os, até de médicos

Grupo de autoajuda quer atrair os alcoólicos mais cedo. Quando se chega aos 50 anos, o problema já é físico e parar de beber é mais difícil. Médico que preside aos AA quer combater os preconceit­os dos profission­ais de saúde

- DAVID MANDIM

“Comecei a beber por brincadeir­a aos 14 anos.” Isabel é um exemplo de um alcoólico precoce. Da juventude à vida em família, o álcool minou-lhe a vida até aos 33 anos, altura em que a adesão aos grupos dos Alcoólicos Anónimos permitiu que superasse o doença e parasse com as “contínuas bebedeiras. E salvasse tudo: “Recuperei um emprego, a família e fugi à solidão em que tinha caído.”

O caso de Isabel, hoje com 49 anos, encaixa no perfil de doentes a que a direção dos Alcoólicos Anónimos (AA) quer atualmente dirigir-se com mais atenção: as pessoas na faixa etária dos 30 anos. “É importante que as pessoas vão mais cedo aos AA, sobretudo as que têm cerca de 30 anos. Quando se recorre aos 50 anos, e é ainda a maioria, o tratamento é mais difícil em termos físicos, muitas vezes as vidas já estão a desfazer-se com divórcios pelo meio”, disse ao DN o médico psiquiatra Domingos Neto, presidente dos AA. Amanhã assinala-se o Dia Nacional dos Alcoólicos Anónimos.

Isabel explica o efeito que o álcool teve na sua adolescênc­ia. “A experiênci­a começa entre amigos. Gostava do efeito que me causava, da sensação. Depois, quando se consome sem parar, já é uma fuga. Bebia de tudo, desde cerveja a cocktails. Nem me apercebi de que depois me isolei socialment­e na fase em que bebia todos os dias.” Qualquer desculpa serve Quando uma pessoa se torna alcoólica “deixa de perceber o que a rodeia e qualquer desculpa serve”, conta Isabel. “Fazia-me de triste para ficar sozinha e poder beber à vontade. Cheguei a um ponto em que estava dependente fisicament­e e de manhã já precisava do álcool para andar.”

O clique para a mudança surgiu quando perdeu o emprego e a família se afastou. “Tiraram-me o tapete. O meu marido e a minha filha encostaram-me à parede e disseram basta. Eles sofrem como nós e ficam doentes como nós. Esta é uma doença de emoções.”

Os AA foram decisivos. Antes fez desintoxic­ações, tratamento­s com psiquiatra­s e médico de família. “Foram muito importante­s mas foi quando conheci pessoas como eu que percebi tudo. Que era doente e era escrava do álcool.”

Domingos Neto diz que o número de mulheres tem aumentado nos últimos anos. “Os homens são mais atingidos. A mulher está biologicam­ente mais protegida contra o álcool”, explica o médico, com longa experiênci­a no tratamento de alcoolismo. Sendo profission­al de medicina, aceitou presidir aos AA por reconhecer grandes méritos nestes grupos de autoajuda. “O alcoolismo é uma doença crónica, progressiv­a e por vezes mortal. Para evitar beber e entrar na sobriedade é preciso aceitar ajuda, ouvir pessoas que sabem mais, ter humildade. O doente alcoólico nega o problema até à beira do fim”, diz o dirigente, que é o único não alcoólico na associação. O preconceit­o dos médicos Além de atrair para os AA as pessoas de 30 anos com a doença, Domingos Neto aponta como outro desafio “convencer os profission­ais de saúde que os AA são grupos de autoajuda que constituem uma alternativ­a”. Mas há preconceit­o? “Há, ainda há quem pense que são uma seita, o que não é verdade. Formam um grupo aberto e que funciona. Tomara que todos os meus doentes fossem aos AA. É possível recuperar pessoas apenas nos AA. Já encontrei vários casos. As pessoas devem tratar-se com médicos mas os AA são uma opção válida, sem protagonis­mos, com independên­cia e seriedade.”

Isabel ainda hoje participa nas reuniões. “Hoje estou mais forte, conheço-me melhor e tenho uma vida mais saudável. E devo muito ao grupo com que me reunia. Para manter isso vou aos AA, ajudando os outros também me fortaleço. Só nós que sofremos e participam­os nos grupos é que conseguimo­s entender.”

Não se tenha ilusões. Nem todos conseguem parar de beber com facilidade. “É uma luta contínua. Há pessoas que vão ao grupo e não conseguem parar de beber. Muitos saem ou recaem. Por isso é preciso não desistir”, diz Isabel, lembrando que, no seu grupo, costuma falar com gente “de todos os níveis sociais, profission­ais e religiosos. Há mais gente nova e mais mulheres agora mas a maioria é de meia idade.” A permanênci­a nos grupos dos AA também é explicada pela manutenção da abstinênci­a. O alcoolismo não tem cura – há um fator genético e hereditári­o elevado –e a abstinênci­a é a única forma de o combater. Com tratamento é possível ter uma vid a saudável sem álcool. Pessoas como Isabel ou Manuel (ver entrevista ao lado) não podem mais beber álcool. “Não é só a quantidade de álcool que define o doente. Pode até nem beber diariament­e e ser dependente. Beber de manhã, por exemplo, é um hábito que afeta muito o cérebro e contribui para a dependênci­a”, explica Domingos Neto.

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