Diário de Notícias

Manuel: “É como renascer. O amor volta com a sobriedade”

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Era ainda uma criança quando começou a beber. O hábito tornou-se doentio quando chegou a adolescent­e e, já adulto, Manuel, hoje com 66 anos, sentiu que iria perder tudo: a família, o emprego, a autoestima. “Não foi fácil aceitar a mudança. Quando comecei nos Alcoólicos Anónimos, ia às reuniões mas bebia na mesma.” Até ao dia em que parou e renasceu. Nunca mais deixou as reuniões de grupo no Porto. Como começou o seu problema com o álcool? Sou filho de gentes do campo, de lavradores, um meio onde era muito fácil o acesso ao álcool, tinha o vinho à disposição nas pipas. Com 9, 10 anos já bebia, sem os meus pais se apercebere­m das quantidade­s. Sentia prazer. E depois prolongou-se na vida adulta? Sim, até aos 30 anos, com a tropa e os estudos pelo meio. Prejudique­i muito os estudos. Só mais tarde é que descobri que o que eu tinha era uma doença. Fui estudar para Santarém e naquele meio quem não bebesse não era ninguém. Isto há quase 50 anos. Conseguia sempre ter dinheiro, enganando os meus pais, era manipulado­r, que é um dos defeitos dos alcoólicos. A minha namorada, hoje minha esposa, veio a descobrir, isto já no Porto, quando estava de férias.Veio o casamento e eu não mudei. Estragava as festas de família, chegava a casa de madrugada embriagado. O alcoolismo é um processo lento mas cada vez mais doentio. De que forma enfrentou essa situação e procurou mudar? A minha esposa tinha vergonha de mim, nem queria andar comigo. Um dia estava com ela e vimos numa revista a frase: “Se queres beber, o problema é teu. Se queres deixar de beber, o problema é nosso, Alcoólicos Anónimo (AA).” Foi aí que decidi ir aos AA, sem grande noção. Continuava a achar que controlava tudo. Ia às reuniões mas bebia na mesma. Então o que motivou a paragem com o álcool? Não resultava e a minha família deu conta. A esposa ameaçou sair de casa, não conseguia viver comigo. Como técnico agrícola, em termos profission­ais, comecei a ter problemas. Tinha 30 anos e o meu filho tinha feito 1 ano. Apanhei uma bebedeira monstra, que nem me lembro do que aconteceu, e estive uns dias doente em casa. Apareceram-me em casa dois elementos dos AA. Acabei a pedir ajuda. Disse para me internarem. Estive um mês internado e, com a ajuda dos médicos, saí e sentia-me bem. O que mais me ajudou foi a minha reflexão sobre a vida que levava, o que queria. Percebi que era um doente e mudei. Não posso ainda tocar numa gota de álcool, há 36 anos que é assim. E voltou aos AA? Por vontade própria. Estava ali a minha salvação, em aceitar os erros, pedir desculpa e reparar os danos – e causei muitos à minha família. A vida muda por completo? As pessoas que recuperam passam a ter uma vida em que andam bem, renascem, com as famílias felizes. Há filhos que não se queriam cruzar com os pais e o amor volta com a sobriedade. Hoje, como se sente e por que continua nos AA? Tenho uma família totalmente estável, com boa relação com os meus dois filhos. Ao longo dos anos, fui conversand­o com eles e explicando a doença que tive. E passei a dar muito aos AA, às vezes até prejudican­do a família. Mas foram os AA que me devolveram à vida e por isso faço o possível para preservar os AA. Penso sempre que, como eu precisei de ajuda, há outros que também podem necessitar no futuro. D.M.

“Foram os AA que me devolveram à vida e faço o possível para continuar. Penso sempre que, como eu precisei de ajuda, há outros que podem necessitar no futuro” “Percebi que era um doente e mudei. Deixei de beber. Não posso ainda tocar numa gota de álcool, há 36 anos que é assim”

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