É como ao volante. Por trás de um monitor é permitido dizer tudo
Há quem use as redes sociais, os fóruns e os sites de notícias para ofender e insultar os outros. O mundo virtual aumenta a sensação de impunidade, de ausência de consequências
Interagir com outras pessoas no trânsito ou nas redes sociais pode ser mais parecido do que imagina, pelo menos quando o tema é a agressividade. Dentro do carro, há condutores que insultam, ofendem e ameaçam, mas, na maior parte das vezes, não eram capazes de o fazer se estivessem cara a cara com o outro. Atrás de um monitor ou através de um telemóvel, também há a sensação de que é permitido dizer tudo. De acordo com os especialistas ouvidos pelo DN, trata-se do “efeito de desinibição online”.
A analogia com o trânsito é feita por Gustavo Cardoso, professor catedrático no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa: “As pessoas não se insultariam tanto face a face, porque a seguir ao insulto normalmente vem a agressão. Com a internet, há a ilusão de que estamos livres da proximidade. As pessoas acham que podem dizer tudo sem se refrearem.” Enquanto presencialmente existe uma “margem de tolerância”, no online, os utilizadores “ainda não perceberam os códigos sociais e que pode haver consequências se não os respeitarem”. É certo que no mundo online e no offline as pessoas “são as mesmas, com virtudes e defeitos”, mas a internet “cria condições para insultarem e tratarem mal”.
Nas redes sociais, nos fóruns, nos blogues e nos sites de notícias, são muitos aqueles que destilam ódio e raiva, por vezes escondidos atrás de perfis falsos. “A internet tem privilégios que dão uma sensação de maior poder sobre o outro e uma menor sensação de que se pode ser apanhado, de culpa. Não é tido em conta o ponto de vista do outro”, explica João Faria, psicólogo clínico que coordena o núcleo de intervenção no comportamento online do PIN (Progresso Infantil). O facto de não existir contacto visual faz que se percam “as pistas não verbais” que desencadeiam sentimentos como a compaixão. “Ver o sofrimento ou o medo ativa mecanismos que atenuam as ações.”
Nas várias plataformas online, os utilizadores têm inúmeras maneiras “de causar danos sem sair lesionados”. “A pessoa pode ser fisicamente fraca, mas o mundo virtual torna-a forte. Há uma inversão de papéis. É o chamado efeito da desinibição online”, indica João Faria. Este efeito, explica, “promove um julgamento mais afiado e sem filtro”. As barreiras que existem face a face e que inibem determinados comportamentos, como as normas sociais, “são mais facilmente ultrapassadas”.
Em Portugal, muitas polémicas nas redes sociais têm acabado em ofensas e ameaças. Foi o que aconteceu recentemente com o fadista João Braga, que incendiou o Facebook com a frase “agora basta ser-se preto ou gay para ganhar Óscares”. Ou com o humorista Rui Sinel de Cordes, que recebeu várias ameaças de morte devido a piadas que envolviam homossexuais.
Rui Abrunhosa Gonçalves, psicólogo forense, diz que “todos os meios onde as pessoas possam exprimir opiniões sem ser responsabilizadas, facilitam situações mais extremas”. No mundo virtual, o anonimato faz que haja uma sensação de “maior impunidade”. Se há “coisas que são idiotices”, outras “têm intenção”, pelo que “tem de haver punição”.
Para o docente da Universidade do Minho, as agressões virtuais estão associadas a “um misto de imbecilidade e ausência de consequências”. Mas é uma sensação ilusória. Gustavo Cardoso lembra que “tecnicamente, não é difícil descobrir quem fez um determinado comentário”, pois “as pegadas digitais” conduzem à pessoa. Comentários pagos Em alguns casos, os insultos que se encontram no Facebook, no Twitter ou nas caixas de comentários de sites de notícias podem fazer parte de um negócio. “Há pessoas que são pagas para insultarem alguém ou alguma entidade. Tal como se negoceiam likes, também se negocia isto”, adianta o docente de comunicação do ISCTE, acrescentando que há empresas estrangeiras a fazê-lo, o que “pode ter efeitos sobre Portugal”. Em causa estão, muitas vezes, tentativas de arruinar a concorrência.
Associada à utilização da internet está uma sensação de liberdade, que, segundo o professor catedrático, “só se altera com uma má experiência ou porque as pessoas aprendem [que a web] não é diferente e que estão sob vigilância”. Perfis diversos É difícil traçar o perfil daqueles que usam a internet para agredir. Podem ser pessoas que se sentem excluídas, frustradas ou até vítimas de agressão. “Qualquer situação de conflito ou ofensa é uma tentativa de controlo e de exercer pressão sobre o outro”, indica João Faria. Ao contrário do bullying, no cyberbullying o agressor “não tem de ser forte, nem precisa de companhia”, pelo que, muitas vezes, “quem é vítima de bullying pode ser agressor no cyberbullying”.
“Agora basta ser-se preto ou gay para ganhar Óscares”
JOÃO BRAGA
FADISTA