Afinal, a inspiração de Donald Trump é bem capaz de ter sido Cavaco Silva. Plantam-se notícias, como as escutas que Obama terá feito a Trump, e cada um que pense o que quiser. A seguir alimenta-se a novela para agradar à claque
Lima, ex-assessor de Cavaco, já tinha confirmado ser ele a fonte da notícia do jornal, cumprindo ordens superiores. E o que diz Cavaco sobre esta verdade? Que só o chefe da Casa Civil falava com ele e só ele tinha autonomia para falar em nome do Presidente. Cavaco Silva atira Nunes Liberato para a fogueira sabendo que o seu chefe da Casa Civil é de outra estirpe. Liberato é um senhor, gente de um calibre difícil de encontrar na política à portuguesa, jamais deixaria Cavaco ficar mal na fotografia. Lima foi capaz de cuspir na mão que lhe deu de comer, Liberato preferiria passar fome a ter de renegar aquilo em que acredita.
Mas Cavaco Silva vai mais longe, acusa o Público de ter estragado a “história”, alegando que na notícia do jornal “o título não tinha nada que ver com o conteúdo”. O ex-Presidente confirma o que pretende desmentir, acrescentando que o que o assessor disse, ele “próprio podia ter dito”. E prossegue em direção ao abismo das verdades alternativas, acrescentando que, ao ler a notícia do Público, considerou que “se tratava de uma tentativa de criar um facto político”. Na mouche, o jornal citando fontes de Belém estaria a trabalhar para o governo de Sócrates.
Os jornalistas estão atentos e perguntam-lhe: “Na comunicação que fez ao país a 29 de setembro, decidiu referir a possibilidade de interferências no sistema informático da Presidência? No fundo, ao fazer isso e ao dizer que tinha chamado responsáveis pela segurança, que tinha encontrado vulnerabilidades no sistema não estava a confirmar” a notícia? Cavaco responde que o fez por causa “do rol de notícias” sobre a matéria. Brilhante! Afinal, a inspiração de Donald Trump é bem capaz de ter sido Cavaco Silva. Plantam-se notícias, como as escutas que Obama terá feito a Trump, e cada um que pense o que quiser. A seguir alimenta-se a novela para agradar à claque.
Cavaco Silva é um político de grande mérito que as quatro maiorias conseguidas confirmam. Este seu livro, com a verdade alternativa que transforma perceções em “factos rigorosos”, é um êxito de vendas. O legado político do ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República vai muito para além da prestação ou de ajustes de contas com que pretende reescrever a história. Ele rivaliza, à direita, com Soares; à esquerda, como os homens que mais influenciaram a vida política portuguesa no pós-democracia. Um e outro estão carregados de virtudes e de defeitos. Cavaco tem mais a ganhar se assumir uma postura de humildade, reconhecendo os seus erros, do que se persistir em presumir que a verdade é uma coisa que vive exclusivamente na sua cabeça e onde todos podem ir beber. Como Soares, à esquerda, também Cavaco não faz o pleno, à direita. Alguém que pense pela sua cabeça não pode ser nem cavaquista nem soarista o tempo todo.