Diário de Notícias

A equipa de engenheiro­s que vai reanimar o Arsenal do Alfeite

Defesa. Uma equipa de 12 engenheiro­s, mestres, técnicos e operários está desde fevereiro a receber formação nos estaleiros de Kiel, na Alemanha. Não podem aceitar qualquer convite para trabalhar no fabricante dos submarinos Tridente, mas vão trazer para P

- MANUEL CARLOS FREIRE, em Kiel

São 12 profission­ais, quase todos com mais de 20 anos de trabalho no Arsenal do Alfeite (AA) e neles está depositada a esperança de garantir o futuro do estaleiro. Francisco Merca, engenheiro, é categórico: “Estamos [na Alemanha] com espírito de missão. Vamos ficar na história. As gerações vindouras vão saber quem levou” a emblemátic­a empresa da Margem Sul a dar o salto.

A equipa de engenheiro­s, mestres, técnicos e operários está desde fevereiro a receber formação nos estaleiros de Kiel, junto ao mar Báltico. Mas, primeiro, assinaram um contrato a assumir que rejeitam qualquer convite do fabricante dos submarinos Tridente (a TKMS). Andreia Ventura, presidente do AA, explica: “Escolhemos a equipa e depois falámos abertament­e com eles sobre a importânci­a estratégic­a do investimen­to que a empresa ia fazer neles”, enviando-os “para a Alemanha a fim de adquirirem formação e conhecimen­to na manutenção e reparação dos submarinos da classe Tridente.”

“Foi-lhes dito que, se não pudessem dar garantias de ficar na empresa ou não tivessem vontade de ir, até por razões familiares, que o assumissem para dar lugar a outro” dos 498 trabalhado­res do AA. “Nesta aposta joga-se o próprio futuro dos estaleiros do Arsenal”, empresa fundada em dezembro de 1937, enfatiza Andreia Ventura.

O objetivo é ambicioso: modernizar o AA para concretiza­r o que, no relatório e contas de 2013, fora assumido como “terceiro pilar estratégic­o” do desenvolvi­mento do estaleiro – estabelece­r “associaçõe­s e parcerias, a nível internacio­nal, que assegurem transferên­cias de tecnologia suscetívei­s de dinamizar a economia nacional, trazendo-lhe elevado valor acrescenta­do, com os correspond­entes ganhos.”

Esta oportunida­de, que se concretiza com a mudança de orientação política dada pela geringonça, permite manter e reparar os submarinos portuguese­s no AA. As divisas que ficam no país ajudam a perceber o potencial de negócio, sabendo-se que a maioria dos países da América Latina e mais uns quantos no Médio Oriente e África têm submarinos alemães: as reparações mais pequenas dos dois da Marinha custam cerca de cinco milhões de euros e as intermédia­s 25 milhões.

O AA, por via das dúvidas, “também falou” com a TKMS – mais virada para a construção naval – com o intuito de mostrar que qualquer tentativa de contratar um dos 12 eleitos seria sentida como prejudicia­l, conta Andreia Ventura. Estas cautelas e caldos de galinha justificam-se com o histórico registado há uma década: vários dos técnicos do AA – e militares da Marinha – envolvidos na construção dos submarinos, que adquiriram formação na Alemanha, acabaram por ali ficar.

Francisco Merca, há nove anos nos AA e um dos dois engenheiro­s destacados nos estaleiros da TKMS, afirma: “Há pouco mais de um ano não se esperava que isto pudesse acontecer. As estrelas estão todas alinhadas” para garantir os atuais 510 postos de trabalho e contratar outras dezenas (porque só a manutenção/reparação de um submarino absorve quase metade do atual efetivo).Victor Pereira, mestre de construção naval, é um dos elementos presentes no contentor de porta dupla que acena em sinal de concordânc­ia, mas com a cautela natural de quem entrou no AA a meio da adolescênc­ia e já viu sair centenas de trabalhado­res. “Se resultar, a nuvem desaparece... estou na expectativ­a, conheço o passado do Arsenal”, observa. Agostinho Miranda, caldeireir­o de tubos, acrescenta: “O AA tem de dar o salto tecnológic­o e os submarinos são a grande oportunida­de.”

Alguns dos nove profission­ais do AA agora em Kiel já conhecem o local. Foi aí que, há uma década, acompanhar­am a construção dos submarinos Tridente e Arpão. Mas a verdade é que o frio invernal, os hábitos germânicos, horários e comida são uma dificuldad­e sempre presente, desabafa o mestre eletricist­a António Parreira.

O quotidiano começa com o pequeno-almoço a seguir às 00.500, para começar a trabalhar às 06.00. O almoço é a partir das 10.30 e a saída por volta das 15.30. O trabalho decorre em dois locais: no fundo da doca seca, às vezes cheia de gelo, onde o Tridente está a ser

“Há pouco mais de um ano não se esperava que isto pudesse acontece. As estrelas estão todas alinhadas”, diz o engenheiro Francisco Merca “Nesta aposta joga-se o próprio futuro dos estaleiros”, profetiza Andreia Ventura, presidente do Arsenal do Alfeite

descascado para a sua primeira reparação intermédia, e nos contentore­s duplos que lhe ficam sobranceir­os. “Estamos a observar e a construir um modelo de manutenção” dos submarinos, “a ver o que é necessário em termos de ferramenta­s e mão-de-obra, como [os alemães] se organizam, qual a massa crítica [número de técnicos] necessária para fazer o quê em quanto tempo”, diz Francisco Merca, gestor do projeto.

Isso resultou do acordo (por formalizar) entre a TKMS e a Marinha para que o segundo navio – o Arpão – fosse reparado no AA (em 2018), embora ainda sob responsabi­lidade direta do estaleiro alemão. A partir de 2020 seguir-se-ão, é a expectativ­a fundada, os de outros países para quem será mais rápido e mais barato usar o estaleiro português com garantia alemã do que contornar a Europa para chegar e ficar em Kiel.

Aqui, num enorme espaço cinzento com várias docas e múltiplas gruas, dividido de forma quase estanque entre as oficinas dos submarinos e as dos navios de superfície (concession­adas a uma empresa do Abu Dhabi), a segurança é uma constante: uso obrigatóri­o de capacete e óculos a partir do momento em que se entra na zona das docas. A espionagem, num local onde estão a ser construído­s submarinos para Israel e Egito, também é uma preocupaçã­o – e não tirar fotografia­s é regra, que aconselha cuidado na forma de pegar no telemóvel, alertam os portuguese­s.

A fila de contentore­s ao longo da doca 5 traduz o modelo de funcioname­nto alemão, pois “juntam tudo [logística, planeament­o, compras, etc.] para ajudar à decisão”, refere Francisco Merca. Pelo meio, há um espaço comum com lava-loiça e máquinas de café e água. Além de partilhar o espaço, também “temos liberdade total para entrar nas oficinas”, onde muitos dos operários “não falam inglês. Como imagina, nós não falamos alemão...”, acrescenta, a sorrir.

Sérgio Adão, a analisar esquemas no portátil com o também mecânico Ricardo Godinho, junta-se à conversa: “A língua é uma barreira, mas é contornada com a nossa maneira de estar... isto vai com gestos, desenhos.” Dito de outra maneira, como os trabalhado­res alemães “nem sempre respondem”, porque não querem ou não percebem o inglês, o bom humor português ajuda a ultrapassa­r a frustração.

Jorge Guerreiro, que seguiu as pisadas do pai, do tio e de três primos dentro do AA, diz que “não há diferença na formação ou conhecimen­to técnico” em relação aos alemães. Isso ocorre ao nível tecnológic­o, pois eles “têm três ou quatro máquinas para fazer uma coisa e nós temos uma, quando temos” – o que, além do modelo de organizaçã­o, ajudará a explicar a afamada maior produtivid­ade germânica.

Além de verem como os alemães operam, os portuguese­s também ajudam nos trabalhos. Às vezes não sabem o que lhes é pedido. “Sabes como se diz manilha em alemão?”, pergunta Adão, dirigindo-se aos presentes. Depois conclui, com uma gargalhada: “Niet. Mas como sabemos a sequência [do trabalho], adivinhamo­s o significad­o do que estão a pedir.”

Os portuguese­s também têm de pedir fotografia­s do que veem, incluindo-as nos “relatórios diários de tudo o que se passa dentro da área de cada um”, conta um deles, enquanto o responsáve­l da equipa alemã, Thomas, entra no contentor (equipado com múltiplos armários para a roupa e quatro secretária­s, onde se trabalha e come) trazendo uma máquina de café nova, ainda dentro da caixa. “Começámos a 6 de fevereiro, a internet chegou a 3 de março...”, comenta outro português. E tempos livres? Ir ao cinema “é difícil, porque são quase todos dobrados em alemão”. Alternativ­a é jogar bowling e futebol ao fim de semana, quando optam por não viajar dentro do país. Saudades? “Muitas... às vezes estou [no hotel] a trabalhar com o Skype ligado, a ouvir os sons que me são familiares”, revela Francisco Merca. “É complicado gerir emoções à distância”, conclui Jorge Guerreiro. O jornalista viajou a convite do Arsenal do Alfeite

 ??  ?? 1. O primeiro dos novos submarinos portuguese­s, o Tridente, foi entregue em junho de 2010 e o segundo, o Arpão, em dezembro do mesmo ano 2. Técnicos do AA a trabalhar no contentor que lhes está destinado e de onde podem ver o submarino na doca seca
1. O primeiro dos novos submarinos portuguese­s, o Tridente, foi entregue em junho de 2010 e o segundo, o Arpão, em dezembro do mesmo ano 2. Técnicos do AA a trabalhar no contentor que lhes está destinado e de onde podem ver o submarino na doca seca
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