O cheiro a sangue
Um familiar próximo – talvez o escritor que hoje se convoca optasse pela simplicidade aconchegante de lhe chamar “ente querido”, como já varias vezes escutei a norte – desenhou uma fronteira clara e radical, à medida que os seus gostos literários iam fechando portas a muitas novidades, que dizia (e muitas vezes com inteira razão) “efémeras e inconsequentes”, despachadas e esquecidas quase na precisa ocasião em que se terminava a leitura, e refinando paixões, que havia um método infalível para separar as boas das más livrarias. Estas últimas seriam, simplesmente, aquelas que não mostrassem títulos disponíveis de Camilo Castelo Branco. Ou então aquelas que se limitassem a dar abrigo a Amor de Perdição, com base na escolaridade. Piores seriam aquelas que pegassem na vida desditosa de Teresa Albuquerque e Simão Botelho, dela partindo para “versões abreviadas” ou atentados quejandos. Demorei, confesso, a perceber este apego a Camilo, o desabrido, o romântico, o construtor de imagens, o arquiteto de romances de cordel, o superlativo absoluto na reinvenção da língua. E, depois, o homem que viveu como escreveu, sempre paredes meias com o excesso, capaz de vender a pataco a sua arte, propenso a amores maiores e mais enviesados do que convinha aos comportamentos da sua época (e de outras). A cada novo encontro com Camilo – e imponho, agora, uma periodicidade nas descobertas das obras que durante anos me fugiram, ignoradas com uma superioridade de asno – ganho consciência do tempo perdido, e que, por mais intensa que seja a procura, nunca dará direito à plena recuperação. Ganhei uma irritação própria, de cada vez que me lembro da série de vezes que, com diplomas académicos ou sem eles, me quiseram ver a concordar com a “inequívoca superioridade” de Eça sobre Camilo. Como se houvesse
alguma lei de incompatibilidades entre os dois que impedisse apreciá-los (que digo eu? sorvê-los sofregamente, devorar-lhes as páginas, reconfortar as paixões e as ironias, isso sim) a ambos. Julgo até, que numa qualquer conjunção astral favorável, um chama pelo outro e acabam por se revelar – agora, enterradas as polémicas – bons parceiros de viagem para quem lê. Há mais: sendo magistrais, marcantes, definitivas, as personagens de Eça raramente conseguem desmentir a origem livresca. Já muitas daquelas que Camilo concebe cheiram a sangue e a suor, falam como gente, agem muitas vezes antes de pensar na “coerência” e na “profundidade” do papel. Isso acontece com A Viúva do Enforcado, escrito em 1877 (há 140 anos, nada menos), antes de Camilo se lançar numa das suas mais fascinantes fases – a que nos
rendeu Eusébio Macário, A Corja e A Brasileira de Prazins. Também aqui há uma Teresa e um amor contrariado, também aqui há um pai tirano, também – em paralelo com o romance – acabamos por respirar os cenários políticos, religiosos e sociais de uma época em que as ações e as ideias pareciam desencontrar-se com enorme frequência. Depois, Camilo descobre tempo para uma tese: “No meu tempo, amava-se muito. É por essa quadra de flores que a minha imaginação se esvoaça como a abelha à volta das corolas de um ramal de rosas. Sou do período dos aéreos perfumes; este agora é o dos sons metálicos. As almas então eram leves, voláteis, e vestiam-se com os raios prateados da Lua; hoje, ouço dizer que os corações estão pesados e retraídos dentro dos seus espinhos de ambição, cobertos de pomos de ouro como os ouriços-cacheiros no estrado das macieiras.” Uma lição. Quem, para descrever um bexigoso, lhe chama “cara de areia mijada” tem de ser mantido por perto. E no ativo.