Diário de Notícias

O cheiro a sangue

- JOÃO GOBERN JORNALISTA

Um familiar próximo – talvez o escritor que hoje se convoca optasse pela simplicida­de aconchegan­te de lhe chamar “ente querido”, como já varias vezes escutei a norte – desenhou uma fronteira clara e radical, à medida que os seus gostos literários iam fechando portas a muitas novidades, que dizia (e muitas vezes com inteira razão) “efémeras e inconseque­ntes”, despachada­s e esquecidas quase na precisa ocasião em que se terminava a leitura, e refinando paixões, que havia um método infalível para separar as boas das más livrarias. Estas últimas seriam, simplesmen­te, aquelas que não mostrassem títulos disponívei­s de Camilo Castelo Branco. Ou então aquelas que se limitassem a dar abrigo a Amor de Perdição, com base na escolarida­de. Piores seriam aquelas que pegassem na vida desditosa de Teresa Albuquerqu­e e Simão Botelho, dela partindo para “versões abreviadas” ou atentados quejandos. Demorei, confesso, a perceber este apego a Camilo, o desabrido, o romântico, o construtor de imagens, o arquiteto de romances de cordel, o superlativ­o absoluto na reinvenção da língua. E, depois, o homem que viveu como escreveu, sempre paredes meias com o excesso, capaz de vender a pataco a sua arte, propenso a amores maiores e mais enviesados do que convinha aos comportame­ntos da sua época (e de outras). A cada novo encontro com Camilo – e imponho, agora, uma periodicid­ade nas descoberta­s das obras que durante anos me fugiram, ignoradas com uma superiorid­ade de asno – ganho consciênci­a do tempo perdido, e que, por mais intensa que seja a procura, nunca dará direito à plena recuperaçã­o. Ganhei uma irritação própria, de cada vez que me lembro da série de vezes que, com diplomas académicos ou sem eles, me quiseram ver a concordar com a “inequívoca superiorid­ade” de Eça sobre Camilo. Como se houvesse

alguma lei de incompatib­ilidades entre os dois que impedisse apreciá-los (que digo eu? sorvê-los sofregamen­te, devorar-lhes as páginas, reconforta­r as paixões e as ironias, isso sim) a ambos. Julgo até, que numa qualquer conjunção astral favorável, um chama pelo outro e acabam por se revelar – agora, enterradas as polémicas – bons parceiros de viagem para quem lê. Há mais: sendo magistrais, marcantes, definitiva­s, as personagen­s de Eça raramente conseguem desmentir a origem livresca. Já muitas daquelas que Camilo concebe cheiram a sangue e a suor, falam como gente, agem muitas vezes antes de pensar na “coerência” e na “profundida­de” do papel. Isso acontece com A Viúva do Enforcado, escrito em 1877 (há 140 anos, nada menos), antes de Camilo se lançar numa das suas mais fascinante­s fases – a que nos

rendeu Eusébio Macário, A Corja e A Brasileira de Prazins. Também aqui há uma Teresa e um amor contrariad­o, também aqui há um pai tirano, também – em paralelo com o romance – acabamos por respirar os cenários políticos, religiosos e sociais de uma época em que as ações e as ideias pareciam desencontr­ar-se com enorme frequência. Depois, Camilo descobre tempo para uma tese: “No meu tempo, amava-se muito. É por essa quadra de flores que a minha imaginação se esvoaça como a abelha à volta das corolas de um ramal de rosas. Sou do período dos aéreos perfumes; este agora é o dos sons metálicos. As almas então eram leves, voláteis, e vestiam-se com os raios prateados da Lua; hoje, ouço dizer que os corações estão pesados e retraídos dentro dos seus espinhos de ambição, cobertos de pomos de ouro como os ouriços-cacheiros no estrado das macieiras.” Uma lição. Quem, para descrever um bexigoso, lhe chama “cara de areia mijada” tem de ser mantido por perto. E no ativo.

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A Viúva do Enforcado Camilo Castelo Branco Ed. Sistema Solar 142 páginas PVP: 14 euros
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