Diário de Notícias

OK, esqueçam. Completame­nte? Isso!

- FERREIRA FERNANDES

E disse Maria Antónia Palla, ainda: “Portugal devia esquecer, completame­nte, Angola”

Na semana passada, Maria Antónia Palla, jornalista, deu uma entrevista ao Expresso. Antes de eu voltar a isso, pequena deambulaçã­o. Há uns anos, depois de uma viagem com a UNITA, por terras de Angola, nas imediações da Jamba, ela escreveu ter gostado muito dos “campos de fuba” que viu. Por essa altura eu trabalhava para o semanário O Jornal e escrevi quanto também eu gostava, quando passava por Vila Flor, Trás-os-Montes, e via “campos de puré de batata”. Foi a minha maneira de dizer quanto me irrita quem escreve sobre o que não sabe.

Nesta entrevista ao Expresso, ela conta que na sua primeira viagem a Angola ouviu falar de Jonas Savimbi. A entrevista­dora equivocou-se e escreveu ter acontecido isso em “1979”. Mas a entrevista­da disse, muito provavelme­nte, 1969. Aconteceu , diz Palla, entre Sá da Bandeira (hoje, Lubango) e o Sudoeste Africano (hoje, Namíbia) – em terras, pois, muito longe (a mil quilómetro­s) das zonas onde os movimentos nacionalis­tas (MPLA, FNLA e UNITA) combatiam. Portanto, tudo o que ela poderia saber era de ouvido e longe.

No entanto, Palla não se coibiu de dizer, agora, ao Expresso, o que ficou a saber então e de forma profunda e definitiva: “[Savimbi] era uma pessoa que dirigia a luta junto das suas tropas. Enquanto os líderes do MPLA, alguns colegas meus da Faculdade, estavam nos cafés em Paris.” E concluiu: “Havia nisto uma diferença muito grande e isso tocou-me bastante.” Abusadora conclusão...

Em setembro de 1968, meses antes dessa tal primeira viagem de Maria Antónia Palla a Angola, o médico Américo Boavida, dirigente do MPLA, com 45 anos, foi morto num bombardeam­ento da aviação portuguesa, no Moxico, Leste de Angola. Boavida dirigia lá, longe dos cafés de Paris, um hospital de campanha.

Moxico – o lugar carrega uma triste ironia para a comparação de Maria Antónia Palla. Entre 1972 e 1973, ainda durante a guerra colonial, Jonas Savimbi fez um acordo de não agressão com o Exército português e a PIDE/DGS, e chegou a ser tratado por médicos militares portuguese­s no Moxico.

São vários os testemunho­s desse comportame­nto indigno de um nacionalis­ta. Referiram-se a ele o ministro do Ultramar Silva Cunha e o general Costa Gomes, e falaram sobre ele militares portuguese­s na região leste angolana (do general Bettencour­t Rodrigues ao capitão-médico Rolão Carvalho), alguns deles tendo feito depoimento­s num dos episódios do programa Guerra Colonial (RTP1), de Joaquim Furtado. Livros de historiado­res, de José Freira Antunes a Dalila Cabrita Mateus, dão esse pacto como facto. Só depois do novo comandante português da zona leste, general Barroso Hipólito, a quem repugnava combinaçõe­s com o inimigo, as ter cortado, é que a combinação entre tropa portuguesa e UNITA cessou.

Porém, eu nunca me permitiria concluir qualquer coisa do género: “Na guerra colonial houve nacionalis­tas que combateram e os da UNITA andavam nos copos em Washington.” Respeito muito quem lutou pela sua terra e pelo seu povo – e os angolanos, por razões minhas, respeito particular­mente. Em 1989, fui convidado, como jornalista, pelo representa­nte da UNITA em Lisboa, Alcides Sakala, a ir à Jamba, a capital folclórica onde Savimbi recebia as delegações estrangeir­as. Mostrava-se lá o sinaleiro e lavras onde se cultivava milho miúdo, que exóticos turistas podiam tomar por fuba.

A Alcides Sakala, disse-lhe que ir só à Jamba não me interessav­a, as minhas férias escolhi-as eu e pagava eu. Alternativ­a?, perguntou-me ele. “Quero passar a linha do Caminho-de-Ferro de Benguela”, respondi. Queria ir para as zonas de guerrilha e não fazer turismo – até então, só um cameraman alemão o fizera para lá do CFB. Chegou a autorizaçã­o da Jamba e para lá fui. Durante cerca de seis semanas, subi pelas anharas do Leste angolano, atravessei os há anos inúteis carris do CFB. Eu e o pelotão de guerrilhei­ros com quem ia abandonámo­s o camião sul-africano que nos levava e, a pé, entrámos na província de Malanje.

Numa montanha atravessad­a pelo rio Luando – já mais perto da capital, Luanda, do que das Terras do Fim do Mundo, na fronteira do sul, de onde partira, fui recebido na aldeia do coronel Antonino. Adolescent­e, ele tinha estado na primeira ação militar da UNITA, no Natal de 1966, atacando Teixeira de Sousa. Quase um quarto de século depois, Antonino continuava guerrilhei­ro. Nunca simpatizei com a UNITA, mas como podia não respeitar aquele homem?

Voltando à entrevista de Maria Antónia Palla: “Portugal devia cortar relações com Angola, não se admite que um país que teve 50 anos de ditadura, tenha relações com outro que é uma ditadura”, disse ela. E é esta frase extraordin­ária a que o Expresso dá destaque e refere na primeira página. E disse ela, ainda: “Portugal devia esquecer, completame­nte, Angola.”

Eis o outro patamar de ignorância confirmado. Já não é a forasteira que fala dos outros. Agora, Maria Antónia Palla fala de Portugal e não o conhece. Não o conhece, não o conhece, não o conhece. Não Portugal completame­nte, mas de parte que sem ela Portugal seria outro. E eu, afinal, fico a conhecê-lo bem melhor: andava-me a faltar este Portugal tão bem explicitad­o por Maria Antónia Palla.

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