Diário de Notícias

Amor Moderno. O acidente de que ninguém falava

- JESSICA CIENCIN HENRIQUEZ Jessica Ciencin Henriquez é escritora, vive em Nova Iorque e está a trabalhar num livro de memórias

Encontrei o nome do condutor num relatório da polícia que tinha sido arquivado na Florida 17 anos antes. O relatório estava rasgado, amarrotado e incorreto.

Dizia: “Um rapazinho atravessou a rua na sua bicicleta.” Mas havia dois rapazinhos na estrada naquele dia e não havia nenhuma bicicleta.

Dizia: “O rapazinho foi atingido e o seu corpo atirado à distância de 17 metros.” Mas ele não foi atirado, ele foi arrastado até lá, preso nas correntes penduradas do atrelado preso ao camião.

Dizia que alguém tinha fugido do local, mas esse alguém era o meu irmão mais velho, Alex, e ele não fugiu. Deixou cair o balde de peixe que ele e Jonathan tinham apanhado e correu para o seu amigo, mas o rapazinho já estava morto.

Alex tinha apenas 15 anos. Este é o dia sobre o qual nunca falámos.

Nós nascemos com um ano e três meses de intervalo, mas parecíamos gémeos com os nossos lábios rosados e os nossos olhos azuis irlandeses.

Antes do acidente, éramos inseparáve­is. Tínhamos os nossos próprios quartos, mas partilháva­mos muitas vezes a minha cama enquanto éramos pequenos. Quando ficámos grandes de mais para isso, Alex começou a dormir no chão do meu quarto. No escuro, brincávamo­s sobre todas as coisas que poderíamos comprar se algum dia ganhássemo­s a lotaria (uma casa feita de piza para ele e uma ilha cheia de macacos para mim).

Alex contava-me histórias de fantasmas até eu ficar demasiadam­ente assustada para adormecer. Ele levantava o braço e dava-me a mão que largava algures entre a meia-noite e a chegada da manhã.

Depois do acidente, Alex nunca mais voltou a dormir no meu quarto.

No caminho para o funeral, os nossos pais disseram-lhe que o que tinha acontecido tinha sido vontade de Deus, que aquilo fazia parte de um plano muito maior. No regresso a casa, enquanto Alex dormia, eles disseram-me que talvez fosse melhor não voltarmos a tocar no assunto.

Então, quando ouvi Alex a chorar no seu quarto à noite, fiquei onde estava, envolta no meu edredão, e não toquei no assunto.

Quando Alex tinha 19 anos desistiu da faculdade – embora ele tivesse sido sempre o filho inteligent­e, o filho do quadro de honra – e eu não toquei no assunto. Aos 23, quando foi preso pela primeira vez acusado de conduzir sob a influência do álcool, e aos 24, quando ele foi para a cadeia por condução imprudente, e aos 25, 26 e 27, quando ele ficava drogado de manhã e bêbado à noite, eu nunca toquei no assunto.

Em vez disso, os meus pais pagavam a fiança para ele ser libertado, eu pagava os seus cartões de crédito, e se ele precisava de uma boleia ou de dinheiro emprestado, um de nós avançava. Quando nada disso funcionou para que ele mudasse, adotei uma abordagem diferente.

Comecei a gritar com ele para crescer, assumir as suas responsabi­lidades, parar de beber, começar a trabalhar e voltar a estudar. Depois amolecia e dizia-lhe quanto o amava e como estava orgulhosa dele quando ele conseguiu um emprego a servir à mesa, e sim, eu ajudá-lo-ia a pagar a escola de culinária, e sim, ele e a sua nova namorada poderiam ficar comigo sempre que viessem a Nova Iorque e, não, não havia nada que eu mais desejasse do que vê-lo feliz novamente.

Quando nada disso funcionou, continuei a não tocar no assunto.

Até que uma noite, quando tínhamos 30 e 31 anos, respetivam­ente, lhe perguntei extemporân­ea e desconfort­avelmente, durante o jantar, se ele alguma vez pensava no dia em que Jonathan morreu.

“Oh, agora queres falar sobre isso?”, respondeu ele com uma risada. E naquele momento senti a sua fúria com o nosso silêncio. “Não precisas de te preocupar com isso agora.”

Nós já comunicáva­mos mesmo antes de conseguirm­os falar, mas para esta conversa não tivemos palavras.

“Lembras-te”, perguntei-lhe, “quando tinhas 7 anos e fizeste aquele corte de cabelo horrível e eu implorei à mãe para me fazer um corte igual?”, ele sorriu, mas não disse nada. “E como gostavas de dançar swing quando éramos crianças e eu te deixava praticar todos aqueles passos comigo mesmo sabendo que iria acabar no chão?”

“Eu fazia isso por ti”, disse ele. “Tu é que gostavas de swing e não eu.”

O que eu lhe queria dizer, mas não sabia como, era que tinha saudades de partilhar a vida com ele.

Mais tarde, fomos ambos para casa e deixámos o silêncio continuar a crescer.

Eu estava desesperad­a para restabelec­er a ligação e convencida de que a única maneira de o fazer era chegar o mais perto que pudesse do momento em que a sua vida se dividiu num antes e num depois. Eu precisava de falar com alguém que soubesse o que Alex sabia, que tivesse visto o que Alex tinha visto.

Procurei nos arquivos online do jornal da nossa cidade natal e demorei horas até encontrar o nome de Jonathan num artigo sobre o acidente. Depois de uma dúzia de telefonema­s, localizei o relatório da polícia. Eles não podiam enviar-me uma cópia, mas disseram-me que seria bem-vinda na esquadra para o ler no local.

Assim, passado pouco tempo, voei para a Florida e fiz exatamente isso. Sentada numa cadeira giratória na secretária da sala de arqui-

É DE AMOR QUE SE FALA NESTA COLUNA, A MAIS LIDA DO THE NEW YORK TIMES. HISTÓRIAS VERDADEIRA­S, CONTADAS PELOS LEITORES. LEIA-AS NO DN AOS DOMINGOS

vos da esquadra de polícia, percorri com o dedo a caligrafia desleixada de adolescent­e do meu irmão na sua declaração de testemunha que terminava com a sua assinatura.

Enquanto lia quase conseguia ouvir a voz dele: “O tráfego estava a acelerar, não havia tempo suficiente. Cheguei primeiro ao passeio e, quando me virei, Jonathan ainda estava no meio da estrada. Eu vi-o a ser atingido. Quando a ambulância chegou, tive de atravessar a rua e dizer à mãe dele.”

Anotei o nome do condutor e, mais tarde, encontrei o seu número de telefone numa lista online. Quando regressei a Nova Iorque, já tinha pensado numa centena de razões para não lhe ligar, mas eu tinha de o fazer: ele sabia o que Alex tinha passado. Ao sexto toque, ele atendeu. “Estou.” “Por favor, não desligue”, pedi. Disse-lhe o meu nome e expliquei que queria saber coisas sobre um acidente em que ele tinha estado envolvido em 1999; dois rapazes estavam a atravessar a rua e eu era a irmã do que tinha sobrevivid­o. “Essa escolha foi a mais difícil que já fiz na minha vida”, disse ele.

Ele disse-me que quando viu os dois rapazinhos na estrada já estava demasiado perto. Se se desviasse para o passeio, ele atingiria Alex; se não o fizesse, bateria em Jonathan.

“Tudo o que sei é que havia dois garotos à minha frente”, disse ele. “Eu tinha de decidir naquele momento, e foi tudo tão rápido. Eu escolhi não bater no seu irmão naquele dia. Que tipo de escolha é essa?”

Eu belisquei-me entre o indicador e o polegar, um truque que tinha aprendido na faculdade para evitar chorar.

Disse-lhe que havia perguntas que eu lhe queria fazer, mas não havia problema se ele não se lembrasse de todos os pormenores, tinha sido há muito tempo.

“Para mim não foi”, respondeu-me.

Durante três horas, ele falou sobre a sua dor, as suas frustraçõe­s com a sua família quando eles não o entendiam. Sobre os empregos perdidos e os vícios adquiridos. Sobre como nunca se tinha casado ou tido filhos. Falar com ele fez-me sentir como o mais próximo que eu poderia vir a estar de dar a mão a Alex novamente. Disse-lhe que queria encontrar uma maneira de tirar a dor ao meu irmão.

“Você não pode”, disse ele. “Mas se a quiser diminuir, você tem de o ouvir.” “E se ele não falar comigo?” “Pergunte novamente”, disse ele. “Ele chegará lá e, quando as palavras começarem a fluir, você vai perceber que perguntar foi a parte mais fácil. Ouvir é a parte difícil e é isso o que você tem de fazer.”

Desliguei o telefone, mas não parei por aí. Procurei as pessoas que testemunha­ram em tribunal, os paramédico­s que estiveram no local, o médico das urgências e a enfermeira que se sentou com a mãe de Jonathan no hospital. E quanto mais ouvia, mais a história de Alex se tornava clara.

Um ano depois desse primeiro telefonema, encontrei-me com o meu irmão e falei sobre as pessoas com quem conversei e o que elas disseram, e o instinto dele foi confirmar e corrigir cada detalhe. Essa foi a minha abertura, e a dele. Posteriorm­ente, pude pedir-lhe o que ninguém na nossa família tinha alguma vez pedido: “Podes começar do princípio e contar-me tudo?” E ele assim fez. Quando eu vejo Alex hoje, aos 33 anos, já não vejo alguém que está preso numa memória. Vejo um pai de dois lindos rapazinhos e um parceiro comprometi­do com a mulher com quem se casará um dia. Vejo um homem que trabalha mais do que qualquer outra pessoa que conheço, acordando para ir para o restaurant­e aos feriados e fins de semana, porque ele já não precisa, nem quer, do tipo de ajuda que eu ofereci antes de ter percebido que perguntar e ouvir são as ajudas mais valiosas de todas.

Exclusivo DN/The NewYork Times

Disse-lhe que queria encontrar uma maneira de tirar a dor ao meu irmão. “Você não pode”, disse ele. “Mas se a quiser diminuir, você tem de o ouvir.” “.(...) Você vai perceber que perguntar foi a parte mais fácil. Ouvir é a parte difícil e é isso o que você tem de fazer.”

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal