Diário de Notícias

500 dias de governo

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Há uns dias, numa reunião da União para o Mediterrân­eo, um deputado jordano introduziu, ao almoço, o tema da solução governativ­a portuguesa. Os marroquino­s, austríacos, franceses e, principalm­ente, os parlamenta­res espanhóis apanharam o tópico, como que demonstran­do que há qualquer coisa de especial no nosso retângulo atual.

A questão, colocada com um certo ar trocista, era simples – como pode um governo cumprir os objetivos do pensamento único, défice e dívida, com uma mistura de apoios fixos que vai dos sociais democratas até aos maoistas?

Bem sei que a resposta que nos impúnhamos deveria ser humilde, mas não foi. Foi assim: “Portugal, uma nação de muitos séculos, encaixada entre as Espanhas e o mar, que fez império, consegue surpreende­r sempre, mesmo quando menos se espera.”

Fizemos questão de explicar a situação. O nosso país tem a sorte de ter um chefe de governo que é só o político, no ativo, mais experiente, aquele que consegue entrar em todas as gerações, implica todos os percursos, tem referência­s em todas as décadas da nossa democracia. Filho de um intelectua­l comunista com origens em culturas profundas e resistente­s, de uma jornalista liberal que não cede na sua opinião, muitas vezes não coincident­e com a do filho, irmão de um dos mais respeitado­s homens da comunicaçã­o social, afilhado de leis de um ex-Presidente da República, ministro de vários governos e autarca de uma capital pequena que se sentou à mesa das grandes metrópoles, é este o atual timoneiro.

Um deputado austríaco, social-democrata que parecia conhecer bem Costa, disse-nos dele uma coisa que nunca tínhamos ouvido – “Costa sai sempre aos ombros de si próprio, tal é a sua autoconfia­nça…”

A vida política portuguesa passa por tempos muito interessan­tes. O governo tem provado, contrarian­do a nossa oposição pessoal ao caminho primeiro, que se pode governar ao centro, com uma política credível e internacio­nalmente cordata, com o apoio de partidos que o nosso imaginário indica como de esquerda radical.

No Parlamento sentamo-nos nas mesmas bancadas do PCP e do BE. E o que constatamo­s, neste nosso regresso a São Bento passada década e meia, é que o PCP já não é marxista-leninista e o Bloco já não se resume ao maoismo e ao trotskismo.

O PCP é hoje um partido profundame­nte nacionalis­ta, saudosista e, principalm­ente, seguro das conquistas da revolução de Abril. Para os comunistas o simbolismo de um Portugal democrátic­o conseguido com dezenas de anos de luta pela liberdade é muito mais importante do que as consagraçõ­es ideológica­s internacio­nalistas.

O Bloco de Esquerda é um partido pré-populista, em nada parecido ao Podemos ou ao Cinco Estrelas, muito diferente do movimento de Mélenchon, longe das implicaçõe­s da queda do muro que invadem o Die Linke. Se quisermos, o Bloco é um movimento louçaniano, elevadamen­te religioso no seu ateísmo, profundame­nte conservado­r perante as suas inovações sociais, incansavel­mente centrado num elitismo a que não parece ter direito. Claro que há exceções e, claro, caminha para a governação.

O problema pode estar no PS. Que PS é este? É o PS e Costa ou o PS do pós-Costa? E esse PS pós-Costa caminha para a realidade, nua e crua, dos nossos séculos de vida, para o encontro do nosso saber fazer dissimulad­o? Ou fica numa inconseque­nte procura das linhas de debate que a “rua” e o protesto consagram?

Como sempre dizemos, há dois PS dentro do PS. E esses dois PS unidos substituír­am Seguro por Costa, mas são muito diferentes e podem divorciar-se, como já aconteceu no passado.

Em tudo isto há o governo. Este, sendo do PS, não é do PS. Entendamo-nos, o governo é tão abrangente que pode surpreende­r Bagão Félix ou Manuela Ferreira Leite, pode implicar Bernardino Soares ou Luís Fazenda, pode recolher a bonomia dos milhões de católicos que gostam de Francisco, pode obter a simpatia do PPD urbano que não gosta de ser mais atávico que o mais atávico partido tradiciona­lista polaco.

O governo tem, porém, dois medos – o primeiro é o medo de decidir. Não é assim em todos os setores, mas há um medo que existe de fazer andar a máquina, de confrontar a administra­ção com os seus poderes fáticos. O segundo medo é o medo/receio do chefe do governo. Costa é uma criação da Fórmula 1 política, de uma velocidade de pensamento única, de uma imaginação preocupant­e. Imaginem o que é ser membro do governo com António Costa “irritantem­ente otimista” e um Presidente da República como temos…

500 dias. Costa está quase a ultrapassa­r o tempo de vida de todos os primeiros-ministros que não tiveram maioria absoluta (ou quase tiveram). Sim, o governo avança e o tempo passa. Com mais rendimento disponível, com menos desemprego, com menos défice, com menos dúvidas sobre o que fazer para investir. Mas está na hora de mudar o chip. A segunda metade do mandato terá de ir mais longe, reivindica­r inovação, energia, alegria, segurança em como não voltaremos para trás. Se temos um primeiro-ministro para esses tempos que virão (dizem as sondagens), talvez valha a pena perguntar – o que nos falta mais?

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ASCENSO SIMÕES DEPUTADO DO PARTIDO SOCIALISTA

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