Diário de Notícias

E agora, Trump?

- BERNARDO PIRES DE LIMA INVESTIGAD­OR UNIVERSITÁ­RIO

Eu não gosto nada de Assad, mas ele está a matar o ISIS.” Foi assim que Donald Trump se referiu ao presidente sírio durante a campanha eleitoral, três anos após ter desincenti­vado publicamen­te Obama a intervir na Síria depois de Assad ter gaseado 1400 civis de uma assentada, dizendo então que o presidente americano precisava de uma autorizaçã­o do Congresso para usara força. Enfim, apolíticaé­oqueée os enhor Trumpnãoéo primeiro nem será o último dos cínicos. Nem mesmo dos incoerente­s, dos imprevisív­eis ou dos mentirosos. E se ontem tentei explorar algumas das motivações que levaram ao ataque americano na Síria, naturalmen­te com a informação disponível, hoje importa perceber os efeitos e as incógnitas dessa ação.

A primeira foi imediata e de consumo interno: várias figuras de primeiro plano democrata e a esmagadora maioria dos críticos de Trump passaram a elogiar o seu temperamen­to, a sua frieza e o imperativo moral da sua opção. Neste sentido, o ataque presidenci­alizou Trump pela primeira vez aos olhos dos seus detratores. O efeito lógico desta quase unanimidad­e é tirar o foco mediático das trapalhada­s sucessivas da administra­ção e, sobretudo, da investigaç­ão que sobre ela pende no Congresso por via do suposto conluio com os homens de Putin. Se o objetivo de Trump era este, conseguiu-o. A dúvida é por quanto tempo.

Para que esta estratégia dure, a frente síria tem de ser alimentada. Com as devidas distâncias, fazer o que Bill Clinton fez durante o affair Lewinsky, quando bombardeou o regime iraquiano sem, no entanto, depor Saddam Hussein. A principal incógnita, se este for o caminho, está em perceber os moldes desse percurso. À partida, o ataque americano não terá grande repercussã­o em Assad, no sentido em que não é de esperar que desemboque numa mudança de regime como a que aconteceu na Líbia. Na altura, se estão recordados, a argumentaç­ão de Obama centrou-se na necessidad­e de travar uma sangria humanitári­a, e para isso recorreu ao Conselho de Segurança e à NATO para, “liderando do banco traseiro”, acabar por eliminar Kadhafi e, objetivame­nte, mergulhar o país numa guerra civil. Até porque emWashingt­on praticamen­te toda a gente está ciente de que a grande lição do pós-11 de Setembro é a de que o vácuo de poder tem sido um pote de mel para os terrorista­s transnacio­nais, e se há hoje um íman de uma jihad global, ele é a Síria. De resto, o pré-aviso feito a Moscovo e, indiretame­nte, a Damasco acomoda o raciocínio: ninguém avisa o inimigo se o quiser deitar abaixo.

Além disso, a destruição da base síria não pode ser considerad­a um sucesso militar, dado que vinte e quatro horas depois já estava a ser utilizada pelo regime para operações aéreas em Homs. Neste sentido, os mísseis Tomahawk apenas sinalizara­m uma posição de força da administra­ção, não fazem parte do início de uma estratégia musculada e continuada para alterar o rumo da guerra civil síria ou mesmo os equilíbrio­s do Médio Oriente. Rex Tillerson, o secretário de Estado norte-americano, vai nesta semana a Moscovo assegurar que a administra­ção não atropelará a esfera de influência russa na Síria.

A ser assim, tal não implica que o ataque americano não tenha efeitos noutras potências regionais envolvidas na Síria. Se há efeito estratégic­o da decisão de Trump, ele passa por motivar e acomodar a postura daqueles que querem forçosamen­te derrubar Assad, como a Turquia, a Arábia Saudita e as pequenas monarquias do Golfo. O que Trump lhes diz é que está disponível para usar a força unilateral­mente para causar mossa no regime, e que mesmo não passando de um leque de ataques cirúrgicos contra alvos militares, há um caminho que as potências sunitas podem seguir: continuar a alimentar a guerrilha anti-Assad, necessaria­mente anticurda ao longo da longa fronteira turca, mas sem quaisquer garantias de sucesso contra o que ainda resta do ISIS e da Frente al-Nusra.

O que isto significa é que Trump não tem a mínima estratégia para a Síria, não está minimament­e preocupado com um quadro de apaziguame­nto no terreno, nem está com vontade de envolver capital político numa ronda negocial capaz de sentar Riade e Teerão à mesa. Se o desejo era regressar ao Médio Oriente com força intermedia­dora decisiva num xadrez tão impossível como o sírio, então a

melhor forma não poderia passar por hostilizar uma parte, dar cobertura total a outra, incendiar a rebelião sunita e desprotege­r os curdos. Além do mais, as centenas de tropas especiais americanas que estão na Síria há pelo menos três anos ficaram agora um pouco mais expostas: se já estavam no meio da guerra civil e da luta anti-ISIS, passaram a estar também na mira de uma hipotética retaliação do regime sírio, do Hezbollah ou das tropas iranianas, o principal sustentácu­lo de Assad no terreno. Não quer dizer que isto aconteça, apenas que passa a ser uma hipótese mais entre tantas outras.

Por fim, há um efeito tendencial­mente positivo na decisão de Trump, que é obrigar a Rússia a definir se quer continuar a dar retaguarda a ataques químicos altamente mediatizad­os ou se está na disposição de deixar cair Assad sem com isso perder influência sobre o regime. Esse facto poderia dar algum oxigénio a novas negociaçõe­s e permitir a Moscovo fugir um pouco à raiva islâmica que a cerca no Cáucaso e na Ásia Central. O recente ataque de um usbeque em São Petersburg­o e o poderoso contingent­e checheno do ISIS são inquietaçõ­es permanente­s no Kremlin. Trump pode ter dado uma boa ajuda nessa terapia.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal