Qual Kerouac!
A irracionalidade do sistema ferroviário dos Estados Unidos é tão grande que o Cardinal desce a sul de Washington para ir de Nova Iorque a Chicago, como ir de Lisboa ao Porto passando por Sevilha
Meu caro António Ferro, parece que ando no seu encalço mas não ando. Ou melhor, ando mas não foi de propósito. Calhou fazer uma viagem aos Estados Unidos, da América, bem entendido, e andar pelos mesmos sítios que o meu amigo andou há noventa anos. Noventa anos, é verdade, como o tempo passa, e eu pelos seus trilhos com o Novo Mundo Mundo Novo na mão, qual Kerouac, qual Pela Estrada Fora. Isto diz muito de si, de mim e da América. Como é que isto foi acontecer é complicado de explicar, mas começou com a compra do livro, editado em fac-símile em 2016 pela editora A Bela e o Monstro Edições, numa Fnac, depois de ter pegado nele e ter lido o algo politicamente incorreto capítulo sobre o Harlem e as mulheres negras, que ficam, o capítulo, o bairro, e as ditas, para outras núpcias.
Escrevo a bordo do Cardinal, o comboio que liga Nova Iorque a Chicago. Faz daqui a dez dias precisamente noventa anos da sua viagem a bordo do Liberty. Ora, a irracionalidade do sistema ferroviário dos Estados Unidos é tão grande, fruto de uma história de linhas privadas e concessionadas que foram sendo consolidadas sem grande lógica, que o Cardinal desce a sul de Washington para ir de Nova Iorque a Chicago, como ir de Lisboa ao Porto passando por Sevilha. Mas se o trajeto continua o mesmo, descendo para ir em frente, o mesmo não se pode dizer do resto. Quando dizia que “os comboios nos Estados Unidos são discípulos adiantados dos grandes transatlânticos”, hoje são alunos com dificuldades de um cacilheiro batido. É que foram noventa anos em que se caminhou de modo diferente: perante o desenvolvimento do transporta aéreo nas médias distâncias e do automóvel, nos Estados Unidos desinvestiu-se fortemente da linha férrea, ao contrário da Europa, que despejou biliões dos contribuintes nas bitolas dos Estados. Qual terá sido a opção melhor, o tempo o dirá. Mas o que lhe posso dizer, meu caro, é que não há já nenhum glamour: a família aqui atrás, a da chinfri- neira que só não se ouve porque as letras ainda não vêm com áudio, com a mãe com a voz da Marge Simpson (igual, igual, e o meu esforço é só que as minhas filhas não se riam de cada vez que ela fala), a rapariga com tiques e unhas compridas, que dorme duas horas, tuíta outras duas, e assim sucessivamente, tirando com as unhas snacks da embalagem, como se fosse uma pinça cirúrgica, interrompendo de vez em quando para ver uns vídeos de maquilhagem em lábios (só em lábios), ou a imigrante ilegal que conversa com um casal, também hispânico mas legalizado, sobre como ir de Chicago para a Califórnia do modo mais seguro. A Marge, aqui atrás, explica ao neto que as coisas no bar do comboio nem são nem caras nem baratas, porque o preço das coisas é sempre o máximo que as pessoas pagam por elas num determinado momento. Lá à frente um jovem tem surtos psicadélicos e esgares, discutindo com uma mulher de cabelo amarelo. “O mundo sobe, para o comboio, em cada estação”, é verdade, mas é o mundo real e não as últimas notícias, o mundo dos Apalaches, do desemprego, batidos da vida. Crianças a chinfrinar, com fome de água diz a Marge.
Meu caro, e os hotéis também mudaram muito. “O maior hotel de Nova Iorque é o Hotel eu tive medo do Pensilvânia como quem tem medo do papão, e fui para o Waldorf Astoria”. Ora então, imagine agora, noventa anos volvidos e ouras tantas ameaças de demolição, tão caro que seria renovar. O Pensilvânia atrai hoje a escumalha do turismo mundial que, como este ilustre patrício, escolhe os hotéis pelo preço independentemente do resto. Independentemente dos corredores tenebrosos, independentemente das torneiras que não fecham, independentemente do chão da banheira ser áspero do uso e não de um antiderrapante obrigatório para evitar ações de responsabilidade civil de turistas cinquentonas que partem o colo do fémur quando se assustam com os cabelos.
Mas agora tenho de ir terminando porque, como sabe e diz muito bem no livro, e isso está tudo igual, isto na América é para andar depressa em chegando ao destino, dá pouco para molenguices lusas, e já vejo os arranha-céus “com mais firmeza, mais naturalidade, mais patina” do que em Nova Iorque e na estação vai estar um guarda, ou um polícia a apressar. E “o polícia americano, ganhando mais, com certeza, do que os nosso diretores-gerais, é uma personagem importante e difícil” ( o salário médio anual de um polícia nova-iorquino é de 72 mil dólares por ano). Volto ao capítulo sobre as mulheres americanas em breve, e vou continuar no seu trilho.